"Até ser Cristo formado em vós"
T.
Austin-Sparks
Capítulo 1
Pedimos ao Senhor que nos ajude de modo que, nas coisas que
iremos compartilhar, possamos considerar alguns dos temas
mais vitais de nossa vida cristã. Em nosso Novo Testamento
possuímos um certo número de documentos escritos. Dentre
estes, há um que está relacionado com uma questão que talvez
seja a mais vital que jamais surgiu em relação ao
cristianismo. Em termos de tamanho, não se trata de um
documento muito longo. Na verdade, é um dos menores.
Contudo, num pequeno espaço, o autor concentrou a própria
essência do cristianismo. Ele tomou sua pena para escrever
este documento com uma intensa determinação de resolver esta
grande questão. Por causa disso, ele concentrou num espaço
limitado a própria essência do cristianismo. Penso que o
apóstolo nunca escreveu nada sob um sentido de tão grande
importância e necessidade. Esta carta vibra com a percepção
de sua paixão sobre este assunto particular.
Uma
grande questão havia surgido. Esta questão ameaçava destruir
a verdadeira natureza do cristianismo. A questão era a
seguinte: em que consiste esta coisa que invadiu o mundo na
vinda de Jesus Cristo? Na vinda de Jesus Cristo a este
mundo, Deus invadiu a história. Deus interviu na história
para operar uma mudança tremenda em todas as coisas.
Portanto, a grande questão era: o que foi isso que veio a
este mundo com Jesus Cristo? Será que é apenas a continuação
de um antigo sistema com algumas coisas a ele adicionadas?
Será um sistema legal configurado à semelhança do judaísmo?
Em outras palavras, será apenas a continuação do judaísmo
com algo que lhe foi adicionado? Ou será que é algo
inteiramente novo e vivo, uma ação espiritual vinda do céu?
Será que a velha vestidura do judaísmo precisa apenas
receber alguns remendos de pano novo? Ou será que a
vestidura deve ser inteiramente nova? Será que os velhos
odres do judaísmo devem ser enchidos com vinho novo? Ou será
que deve haver um odre totalmente novo? Esta é a grande
questão. A importância desta questão implicava numa enorme
diferença. Tal diferença tornou-se um grande campo de
batalha entre o velho e o novo.
Esta
questão envolveu o cristianismo em grande confusão. Por
algum tempo, quase todos os cristãos estavam num estado de
incerteza sobre este assunto. Tal fato gerou divisões muito
sérias dentre o povo do Senhor. Essa incerteza chegou a
insinuar-se até mesmo entre os primeiros apóstolos. Pedro, o
líder dos 12, experimentou um grande conflito a respeito
disso. Numa ocasião, ele teve um confronto muito sério com o
apóstolo Paulo sobre este tema. Tiago, que era um dos irmãos
terrenos do Senhor, tinha grandes reservas sobre este
assunto. Estêvão, o primeiro mártir cristão, morreu
justamente por causa desta questão. Onde quer que o
cristianismo chegasse, esta disputa vinha logo em seguida.
Nos
dias em que vivemos, talvez seja difícil perceber a tremenda
tensão que havia naquela época em relação à verdadeira
natureza do cristianismo. Embora este documento particular
ao qual nos referimos acima tenha realmente resolvido o
assunto de forma ampla em sua época, a natureza desta
controvérsia tem persistido até nossos próprios dias. Será
que o cristianismo é um sistema legal ou é uma vida
espiritual? Foi por causa desta questão que o Senhor
ressurreto e assentado à destra do Pai abriu caminho através
do céu e colocou Sua mão sobre o homem chamado Saulo de
Tarso. Não era pouca coisa para o Senhor Jesus, que havia se
assentado à destra da Majestade nos céus, levantar-se de Seu
trono e vir a esta terra novamente. O Senhor deve ter
percebido que havia um assunto muito sério envolvido nisso.
Portanto, Ele não designou um anjo ou um arcanjo. Ele deixou
Seu lugar na glória e desceu para encontrar aquele homem na
estrada de Damasco. Ali o Senhor colocou sua mão sobre
Saulo.
Paulo mais tarde descreveu o que lhe aconteceu dizendo ter
sido "conquistado" por Cristo Jesus (Fp 3:12). Você sabe
qual é o significado da palavra "conquistado"? Espero que
você saiba o significado dessa palavra, ao menos no que se
refere à lei. Um policial está procurando um determinado
criminoso. Ao encontrá-lo, ele coloca firmemente suas mãos
sobre o criminoso, prendendo-o. Foi essa palavra que o
apóstolo utilizou. Ele disse: "Eu fui conquistado, eu fui
aprisionado por Jesus Cristo". Tudo isso aconteceu com
relação à questão específica que estamos considerando. O
Senhor aprisionou Paulo como o instrumento por meio do qual
Ele iria responder a esta questão. Isso mostra quão
seriamente o Senhor considerava este assunto.
É
impossível entender o ministério do apóstolo Paulo a menos
que reconheçamos esta conexão particular. Todo o ministério
do apóstolo Paulo está relacionado com um assunto: a
natureza espiritual, celestial, do cristianismo. O próprio
Paulo, por meio daquela poderosa intervenção celestial,
conseguiu perceber a grande diferença. Ele entendeu que uma
grande separação havia sido criada entre o velho judaísmo e
o novo cristianismo, entre o antigo Israel terreno e o novo
Israel celestial. Paulo percebeu que elas eram duas nações
diferentes, distintas. Ele compreendeu que esta questão
separava as eras. Aquilo que havia existido nas eras
passadas estava agora terminado. Algo novo havia sido
introduzido, para ser a natureza das coisas por todas as
eras eternas. Quando o apóstolo Paulo percebeu a vasta
diferença entre o legal e o espiritual, quando isso foi
aberto sobre ele desde o céu, ele lançou-se nesta batalha
disposto a dar até sua última gota de sangue.
A
batalha começou logo que Paulo foi salvo. Após o Senhor
tê-lo encontrado, ele entrou na cidade de Damasco. Tendo
sido batizado e recebendo o Espírito Santo, ele passou a
testificar-lhes que Jesus é o Cristo. Seus ouvintes
entenderam o que isso significava em relação à pessoa de
Paulo: ele havia mudado de terreno. Paulo havia deixado para
trás o terreno do legalismo, do judaísmo, e assumido o
terreno de Cristo. Neste momento, a batalha começou e Paulo
teve que fugir da cidade. Ao longo dos trinta anos de sua
vida com o Senhor, Paulo se encontrou nessa batalha em todos
os lugares onde esteve. O último capítulo do livro de Atos,
que nos mostra Paulo na prisão aguardando uma possível
sentença de morte, revela que a batalha continuava, pois os
judaizantes estavam com ele em suas cadeias. Paulo procura
argumentar com eles, mas o resultado sempre é o mesmo: "Não
há mais proveito nisso; agora devo voltar-me para os
gentios". Esta batalha perdurou desde o início até o fim de
sua vida. Tratava-se de uma batalha relacionada a um assunto
crucial: o cristianismo é um sistema legal sobre a terra ou
é uma ação espiritual do céu?
Desejo iniciar afirmando que existe um documento no Novo
Testamento que estabelece a resposta para esta questão.
Minha suspeita é que, a esta altura, muitos já tenham
descoberto que documento é este. Se você ainda tem dúvidas,
trata-se da epístola aos Gálatas. Muitos hoje crêem que esta
epístola foi a primeira que Paulo escreveu. Quando eu era
jovem, predominava o pensamento que as epístolas aos
Tessalonicenses haviam sido as primeiras que Paulo havia
escrito, e eu assim afirmei muitas vezes. Estudos
posteriores levaram aqueles que são profundos conhecedores
da Palavra a concluir que a epístola aos Gálatas foi
provavelmente a primeira escrita por Paulo. Contudo, não
pretendo discutir este tema nesta oportunidade. Você pode
aceitar essa conclusão ou então deixá-la de lado.
Entretanto, se isso for verdade, o fato de que este tenha
sido o primeiro grande tema sobre o qual o apóstolo escreveu
adquire grande significado. Se você ler esta carta e sentir
a energia com a qual Paulo a redigiu, poderá discernir quão
seriamente ele considerava esta questão. Ele percebeu que
nela havia algo que estava ameaçando toda a natureza do
cristianismo. Desde então, ele se dedicou a realizar esta
obra, que consiste em preservar a natureza puramente
espiritual daquilo que havia vindo com Jesus Cristo.
Seguiremos adiante para considerar o conteúdo desta carta,
procurando entrar nela com progressiva profundidade.
Contudo, antes de fazermos isso, existem duas coisas que
necessitam receber nossa atenção. Primeiramente, precisamos
considerar o que o próprio apóstolo quis dizer com esta
carta. A resposta disso está no versículo 8 do primeiro
capítulo: "Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu
vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado,
seja anátema".
Toda
a epístola é reunida em uma única expressão: "O evangelho
que temos pregado". Paulo diz que o tema do qual está
tratando é a natureza do evangelho. Ele afirma: "O
evangelho...que vos temos pregado". Portanto, esta carta é
uma reafirmação do evangelho.
Vários nomes tem sido dados para aquilo que está contido no
Novo Testamento. Muitos chamam isso de "cristianismo", que é
um termo bastante abrangente. Outros o chamam de "fé cristã"
ou "religião cristã". Nenhum destes termos é usado no Novo
Testamento. Jamais o conteúdo do Novo Testamento é por ele
definido como "cristianismo", "fé cristã" ou "religião
cristã". Apenas um nome é utilizado para esta definição.
Tudo aquilo que está contido no Novo Testamento e que veio
com Jesus Cristo é simplesmente chamado de "evangelho".
Neste ponto surge algo que devemos considerar com atenção.
Temos o costume de fazer uma distinção entre aquilo que
chamamos de "o evangelho" e o ensino mais amplo para os
crentes. Para muitos, o evangelho é aquilo que se dirige aos
que ainda não foram salvos. Quanto ao que fornecemos aos que
já são salvos, trata-se de uma outra coisa. Portanto, você
deverá promover algumas reuniões para a pregação do
evangelho no fim-de-semana. Estas reuniões não são para os
crentes, mas para os que não foram salvos. Trata-se de uma
distinção totalmente artificial. Tudo que está no Novo
Testamento, seja para os salvos e para os não-salvos, é
chamado de "evangelho". Não se trata de uma religião. Não se
trata de uma filosofia de vida. Não é um sistema de verdades
e práticas. Trata-se apenas do evangelho. Esta palavra
significa "boas novas". Várias conexões são dadas a esta
palavra, tal como "o evangelho da vossa salvação".
Entretanto, existe algo abrangente e inclusivo sobre esta
palavra, que consiste no evangelho de Deus com respeito a
Seu Filho Jesus Cristo. Será que você percebe o que fazemos
quando separamos o evangelho para os incrédulos e aquela
outra instrução para os crentes? Nós abandonamos o terreno
cujo fundamento é o Filho de Deus e entramos em um outro
território destinado aos cristãos.
O
evangelho abrange tudo aquilo que está em Cristo. Você nunca
alcançará o lugar onde cessará de descobrir algo novo
relacionado ao Filho de Deus. Contudo, ainda que possamos
continuar descobrindo mais de Cristo por toda a eternidade,
tudo ainda será o evangelho. Você pensa que o evangelho
termina quando você nasce de novo? Você pensa que o
evangelho termina quando você deixa este mundo e vai para o
Senhor? Se você observar a grande multidão que homem algum
pode enumerar ao redor do trono de Deus, e ouvir aquilo que
eles cantam, perceberá que é um hino sobre o evangelho, que
proclama: "Digno é o Cordeiro". Todos estes que cantam
chegaram a uma compreensão absolutamente plena do Filho de
Deus. Portanto, note bem: o evangelho é a boa nova de Deus
com respeito a Seu Filho por todos os tempos e por toda a
eternidade. O evangelho é algo infinitamente maior que a
salvação do pecado e o livramento do juízo e da morte.
O
evangelho abrange tudo que está em Cristo. Foi por este
evangelho que o apóstolo estava lutando. Não era apenas pela
salvação destas pessoas, mas para que eles pudessem entender
tudo que estava compreendido na salvação em que haviam
entrado. Este é o campo de batalha de Paulo. Ele diz: "O
evangelho que vos temos pregado". O que isso significa? Uma
epístola inteira é concentrada numa única expressão. O
evangelho é a emancipação de toda escravidão legal. Ele
consiste na emancipação para a liberdade dos filhos de Deus.
Este é o tema da epístola: emancipação de toda escravidão
legal para a entrada na liberdade dos filhos de Deus. Paulo
então diz: "Este é o evangelho que vos temos pregado".
Creio que alguns de vocês leram a história da guerra civil
americana. Vocês sabem que toda a nação se dividiu em duas
partes por causa de um único assunto. Milhões de vidas foram
sacrificadas por causa dessa única questão.Tratava-se da
emancipação dos negros que estavam sob escravidão. Essa
questão foi decidida em batalhas, com um custo muito alto.
Finalmente, o lado que defendia a libertação dos escravos
venceu e com isso, foi proclamada a liberdade para todos
eles. Aqueles escravos que haviam passado suas vidas em
terrível escravidão mal sabiam o que fazer com a liberdade
que haviam recebido. Era algo tão maravilhoso que eles mal
podiam acreditar. Eles se perguntavam se era realmente
verdade que haviam sido libertos. Agora eles não mais
precisavam temer os feitores, nem seus chicotes, pois eram
livres. A coisa mais maravilhosa em suas vidas foi aquele
grande dia quando a proclamação foi feita: "os escravos são
livres". Maldito seria aquele que tentasse trazê-los de novo
à escravidão.
Quando você se aproxima dos Estados Unidos pelo oceano,
entrando pelo rio que conduz à grande cidade de Nova Iorque,
passará pela famosa estátua da Liberdade. É um monumento
muito alto, onde a figura da liberdade como que estende sua
mão sobre toda a nação norte-americana. Esta é a magna
carta, o decreto de isenção que o apóstolo Paulo escreveu na
epístola aos Gálatas.
Durante as grandes guerras napoleônicas, quando o exército
francês invadiu a Rússia, parecia que Napoleão iria devastar
aquele país. Por longos e longos meses o confronto assolou a
Rússia. A questão era muito séria. Porventura aquele país
seria esmagado sob o calcanhar de Napoleão? Poderia a Rússia
ser salva? Houve um dia em que um general dirigiu-se ao
comandante-em-chefe das forças russas. Aquele comandante era
agora um homem envelhecido que sofrera grande desgaste na
longa guerra. Naquele dia, o general chegou e disse-lhe:
"Napoleão está batendo em retirada. O exército francês deu
meia-volta e está deixando nosso país." O velho comandante
ficou em silêncio. Em seguida, ele reclinou sua cabeça e,
enquanto lágrimas corriam por sua face, disse: "Graças a
Deus, a Rússia está salva. A batalha está terminada".
Tanto a guerra civil americana como a campanha russa são
coisas pequenas se comparadas com a questão que estamos
discutindo. O grande tema da liberdade do povo de Deus é
algo muito maior do que qualquer escravidão terrena.
Nesta epístola, Paulo chama o legalismo de jugo de
escravidão. Ele clama: Permanecei, pois, firmes e não vos
submetais, de novo, a jugo de escravidão. (Gl 5:1b). Quando
ele usou a palavra "jugo", estava empregando a mesma palavra
que o próprio Jesus havia utilizado. Jesus olhou para a
multidão e disse: Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de
mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis
descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o
meu fardo é leve (Mt 11:29,30). Jesus estava falando às
multidões que estavam sob jugo do legalismo judeu. Ele disse
que estar sob aquele jugo era estar cansado e
sobrecarregado. Ele afirmou que Seu jugo era suave. Por meio
disso, Ele estava dizendo o seguinte: "Eu vou libertá-los do
jugo da escravidão judaica. Eu vou libertá-los de toda esta
canseira sob o legalismo".
Os
escribas e fariseus tinham milhares de interpretações para
as Escrituras do Antigo Testamento. Eles tomaram a lei de
Moisés e colocaram 2.000 interpretações em cima de cada lei.
Cada coisa que Deus disse eles interpretaram criando
milhares de coisas diferentes. O resultado disso foi que
eles tomaram a Palavra de Deus e produziram uma
interpretação que tornou-se um fardo a ser carregado. Deus
havia dito: "Não farás tal coisa". Então os escribas e
fariseus disseram: "Deus quis dizer que não farás tal coisa,
mas que também não farás aquela outra coisa e ainda milhares
de outras coisas". Moisés havia dito que eles deveriam fazer
uma determinada coisa. Contudo, os escribas e fariseus
diziam que isso implicava em fazer milhares de coisas. Jesus
disse que eles juntavam pesados fardos e os colocavam sobre
os ombros dos homens. Este sempre é o resultado do
legalismo. Quando você está sob um sistema legal, você não
sabe o que pode fazer. Você fica sempre perguntando: "Será
que eu posso fazer isso? Se eu fizer isso, será que algum
juízo não cairá sobre mim? E se eu não fizer isso numa
determinada forma, será que cairei no juízo de Deus?"
Assim estavam as coisas naquela época. O próprio Paulo tinha
estado debaixo daquele fardo. Ele nos fala sobre isso no
capítulo sete da epístola aos Romanos. Paulo termina aquela
terrível história com uma afirmação: "Desventurado homem que
sou! Quem me livrará do corpo desta morte?" Todo aquele
sistema é um sistema de morte. Contudo, ele acrescenta:
"Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. Eu encontrei
nEle todas as coisas." Esta é a batalha desta carta aos
Gálatas. Isso é o que Paulo chama de evangelho. Aquele que
corre, leia; e aquele que lê, corra. Corra para fora de
qualquer coisa dessa natureza e para dentro da liberdade na
qual Cristo nos libertou.
Até
este ponto apenas introduzimos a grande questão. Tal questão
se refere à verdadeira natureza do cristianismo, ou seja,
daquilo que veio ao mundo com Jesus Cristo. O que
apresentamos até agora não deve ser tomado como o todo, pois
é apenas o início. Ainda precisamos ver em que consiste
termos sido colocados em Cristo. De forma geral, realmente
estamos na liberdade. Contudo, precisamos entender o
significado disso. Isso quer dizer que vocês não devem ficar
satisfeitos com o que foi dito até agora. Guardem tudo em
seus corações e pensem que ainda há algo mais que precisamos
aprender sobre este assunto. Trata-se de um glorioso
evangelho, o evangelho de nossa liberdade em Cristo.
Portanto, nós recusamos ser levados de volta à escravidão
por qualquer homem.
Capítulo 2
Já
avançamos bastante na abordagem de nosso assunto e não
podemos retomar tudo de novo. Gostaria apenas de relembrar o
assunto com o qual nos temos ocupado nesta oportunidade. Já
afirmamos que este assunto tem sido a mais vital das
questões na história do cristianismo. Trata-se de fazer a
seguinte pergunta: o que é o verdadeiro cristianismo? Em que
consiste aquilo que invadiu o mundo na vinda de Jesus
Cristo?
Uma
imensa batalha foi travada em relação a esta questão na
época dos apóstolos. Hoje em dia, no que tange à natureza
desta questão, a batalha continua. Ela assumiu uma forma
peculiar no tempo dos apóstolos. Naquele momento, a questão
era: judaísmo ou cristianismo? Depois daquela época, a
questão deixou de ser entre judaísmo e cristianismo, mas ao
longo da história e até hoje, tudo permanece igual em termos
de princípio. A questão é a seguinte: o cristianismo é um
sistema legal ou é uma ação espiritual do céu?
Já
vimos que a batalha e a questão que a suscitou foram
concentradas pelo apóstolo Paulo em sua breve carta aos
Gálatas. Por sua vez, esta carta está concentrada em uma
única expressão que o apóstolo emprega no início: "O
evangelho que vos temos pregado" (Gl 1:8). Também vimos que
a palavra "evangelho" não se refere a algo destinado apenas
aos não-salvos. Esta palavra compreende tudo que está no
Novo Testamento. Este é o primeiro aspecto básico que
precisamos entender: o significado abrangente do evangelho.
Ele não trata apenas de boas-novas para o mundo e para os
não-salvos, mas também de boas-novas de Deus com relação a
Seu Filho para o povo de Deus. Portanto, nós dedicamos algum
tempo tratando da natureza do evangelho.
Também havíamos mencionado que havia um segundo aspecto
básico que precisamos observar antes de estudar o conteúdo
da epístola aos Gálatas. Esta carta está profundamente
enraizada neste aspecto particular, que diz respeito ao
próprio Paulo e a base de seu apostolado. Eu ficaria muito
satisfeito de saber que esta carta está bem viva em suas
mentes. Eu também ficaria muito satisfeito de saber que,
após termos passado pela primeira sessão, vocês tenham sido
encorajados a ler toda a carta novamente. Quero sugerir que
vocês leiam esta carta diariamente, enquanto estivermos
tratando desse assunto. Creio que isso vai ajudar-nos
bastante.
Se
você está bem familiarizado com a epístola aos Gálatas,
certamente já notou o papel de destaque que o apóstolo Paulo
assume nela. Ele fala muito sobre si mesmo e sobre seu
apostolado. Existe um sentimento de que há um homem por trás
da carta. Isso significa que há um homem por trás do
evangelho. A expressão pessoal do apóstolo adquire uma
dimensão muito grande. Contudo, há um propósito para isso,
que certamente não é Paulo buscando glória para si mesmo. O
propósito não é magnificar a Paulo, mas magnificar a Jesus
Cristo. Isso é comprovado pelo fato de que, numa carta tão
breve, o nome "Cristo" ocorre 43 vezes. Voltaremos a esse
ponto mais tarde, pois agora o mencionamos com a única
intenção de colocar Paulo em segundo plano e deixar Jesus
Cristo à frente.
A
razão para o destaque dado ao apóstolo nesta epístola é
justamente a questão da grande mudança que estava sendo
operada em seu tempo. Essa tremenda mudança no plano
histórico e espiritual em todas as eras estava
concentrando-se sobre esse homem, Paulo. Não era seu desejo
que fosse assim. Ele certamente preferiria que isso
ocorresse de outro modo. Paulo não queria ser a figura de
destaque nesta controvérsia. Contudo, seus oponentes
acabaram por fazê-lo a figura central da discussão. Eles
diziam que Paulo não tinha o direito de pregar aquilo que
estava pregando. Eles colocavam Paulo em oposição a Moisés e
Moisés em oposição a Paulo. Eles estavam dizendo que Deus
sempre se referira a Moisés como "meu servo". Isso implicava
que, segundo as Escrituras, Moisés era o servo aprovado do
Senhor. Nessa condição, Moisés trouxe todo o sistema do
Antigo Testamento. Ele foi o autor do sistema da lei. Além
disso, ele registrou as Escrituras enquanto Deus lhe ditava,
ou seja, Deus disse verbalmente a Moisés o que escrever.
Portanto, o Antigo Testamento foi inspirado verbalmente por
Deus. Isso significa que o sistema judeu foi inspirado por
Deus. Por meio de Moisés, Deus nos deu o grande sistema de
adoração que temos no livro de Levítico.
Todos estes pontos nos permitem ver que os oponentes de
Paulo pareciam ter argumentos muito fortes contra ele. Eles
diziam que Paulo negava tudo isso. E Paulo de fato disse que
tudo isso estava acabado. Tomemos como exemplo a questão da
circuncisão, a qual eles enfatizavam. Segundo os oponentes
de Paulo, a circuncisão é muito importante, tendo sido
estabelecida por Deus e fundamentada no relato inspirado do
Antigo Testamento. Segundo eles, a Bíblia dizia que a
circuncisão tinha grande valor. Mas este homem chamado Paulo
deliberadamente diz: "a circuncisão não tem valor algum".
Então eles concluíam que Paulo estava contradizendo as
Escrituras e provando que não acreditava na sua inspiração.
Os
oponentes de Paulo não pararam neste ponto, mas foram mais
longe. Eles não apenas atacaram seu ensino, mas também o
atacaram pessoalmente. Você sabe que numa causa maldosa
sempre há uma arma maldosa. Sempre que há uma causa maldosa,
logo surgem os ataques pessoais. Deixa-se de atacar o que a
pessoa ensina para atacar a própria pessoa, com o fim de
desacreditá-la. Foi isso que os oponentes de Paulo fizeram,
dizendo que ele não era um verdadeiro apóstolo. O máximo
admissível é que ele era um apóstolo inferior aos outros
apóstolos. Eles também disseram que Paulo era um falso
mestre, que sua doutrina não era íntegra e que ele era um
homem perigoso. Dessa maneira, eles tentaram minar o
ministério de Paulo.
Por
meio disso você pode ver quão proeminente era o lugar que
Paulo ocupava nessa grande discussão histórica e espiritual
quanto à verdadeira natureza do cristianismo. O fato de que
os poderosos oponentes de Paulo dirigiram o foco de atenção
sobre sua pessoa acabou por extrair de Paulo um testemunho
pessoal. É neste testemunho que encontramos a própria
essência do cristianismo. Nele encontramos o vinho novo que
romperá com os odres velhos. Aqui temos a vestidura nova que
Paulo não tentará remendar. Em seu testemunho, temos aquilo
que constitui a nova era na qual vivemos.
Diga-se de passagem que devemos agradecer muito aos inimigos
de Paulo. Temos que agradecer a estes inimigos pela grande
luz que emergiu dos sofrimentos do apóstolo. Temos que
agradecer a estes inimigos pela grande emancipação do
cristianismo de um sistema legal e morto. Deus transformou a
perseguição de Paulo em um ganho maravilhoso para toda esta
dispensação. As coisas frequentemente acontecem assim: Deus
obtém o vinho puro no lagar. Naquele lugar, as uvas tem que
ser esmagadas e partidas. À partir disso, o vinho puro do
reino fluirá. Foi assim que aconteceu no caso de Paulo.
É
preciso entender claramente que a batalha não era entre
Paulo e os judeus, mas entre a tradição e a espiritualidade.
Paulo somente entrou neste combate porque percebeu a
diferença e passou a falar sobre aquilo que tinha visto.
Desse modo, podemos entender a resposta pessoal de Paulo aos
gálatas.
Antes de irmos adiante, preciso adicionar algo que é muito
importante para fechar este aspecto do grande assunto que
estamos considerando. Será que o apóstolo Paulo foi um vaso
especialmente escolhido para este propósito? Será que ele
tem uma posição particular em relação à presente
dispensação? Desde aqueles dias, Paulo tem sido alvo de
violentos ataques. Teólogos modernistas e liberais tem
atacado Paulo, afirmando que ele não é um verdadeiro
intérprete de Cristo. Dentre todos os homens na Bíblia, não
há personalidade mais controversa do que o apóstolo Paulo.
Mesmo aqueles que aceitariam a Jesus com restrições, não
aceitariam a Paulo de modo algum. Portanto, temos que
resolver essa questão: qual é a relação deste homem para com
toda a presente dispensação?
Enquanto não pudermos responder com clareza esta pergunta,
não poderemos entender o ministério de Paulo. Afinal de
contas, todo o seu ministério converge nesse único tema: a
natureza espiritual e celestial na nova dispensação que foi
introduzida com Jesus Cristo. Portanto, precisamos
considerar o apostolado de Paulo. Mas lembremo-nos de que,
ao fazer isso, estaremos pensando em nosso tema principal,
que consiste na natureza espiritual e celestial da presente
dispensação. Os princípios do apostolado de Paulo constituem
o real fundamento da dispensação em que vivemos.
Vejamos o que nos dizem dois trechos da epístola aos
Gálatas:
"Faço-vos, porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim
anunciado não é segundo o homem, porque eu não o recebi, nem
o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus
Cristo" (Gl. 1:11-12).
"E,
quanto àqueles que pareciam ser de maior influência (quais
tenham sido, outrora, não me interessa; Deus não aceita a
aparência do homem), esses, digo, que me pareciam ser alguma
coisa nada me acrescentaram" (Gl. 2:6).
Estes dois trechos resolvem a questão acima referida. Qual é
a origem do apostolado de Paulo? "Não segundo homens, nem
recebido por meio de um homem. Nada recebi de homens, mas
mediante revelação de Jesus Cristo." Qual é o significado
destas afirmações?
Ao
chegarmos nesse ponto, necessito fazer um pedido. Estamos
tratando deste assunto e talvez você considere que estou
fornecendo algum ensino. Talvez você lembre deste tema que
estamos tratando no futuro como um ensino sobre um assunto
especial. Evidentemente, existe ensino no que estamos
compartilhando, e este ensino está focalizado num assunto
específico. Contudo, gostaria de dizer-lhe enfaticamente que
as coisas que estou dizendo não são um código de verdades,
mas sim um testemunho de nosso fundamento. Trata-se de um
teste quanto ao fundamento no qual você está individualmente
firmado. Portanto, não se trata de termos uma série de
mensagens para recebermos ensino, mas de um desafio vital
para nossa posição espiritual. Afirmamos anteriormente que,
num certo sentido, toda a presente dispensação está
focalizada na experiência espiritual do apóstolo Paulo. Isso
acontece com ele de uma forma tão plena como em nenhum outro
caso, a não ser o próprio Senhor Jesus. Se isso que
afirmamos é verdade, então aquilo que dissermos sobre o
apostolado de Paulo é fundamental para nossas próprias vidas
espirituais.
Que
significado tem para nós a origem do apostolado de Paulo?
Ela significa que a realidade básica da presente dispensação
é um encontro pessoal e direto com Jesus Cristo. Preciso
repetir essa afirmação, pois é um ponto de fundamental
importância do qual todas as demais coisas virão. A
realidade básica da dispensação na qual vivemos é um
encontro pessoal e direto com Jesus Cristo. Trata-se de algo
entre a pessoa de Cristo e nós, pessoalmente. É algo direto,
pois não se dá por meio de um homem, nem por meio de um
sacerdote ou qualquer outro tipo de intermediário. Não
ocorre por meio de um ritual, nem por meio de um sistema ou
por meio do homem. É algo direto entre Cristo e nós.
Fracassaremos para com o propósito desta dispensação se não
formos capazes de dizer: "Foi assim que aconteceu conosco".
O método pelo qual Paulo teve sua experiência e nós tivemos
a nossa pode ser diferente, mas cada um de nós deve ser
capaz de dizer individualmente: "Eu encontrei a Jesus Cristo
e Jesus Cristo me encontrou diretamente. Homens podem ter
ajudado, mas eu não recebi tal coisa de homens. Não o recebi
nem mesmo daqueles grandes homens que estavam em Jerusalém.
Não o recebi dos grandes expoentes do cristianismo. Eu o
recebi de forma direta e pessoal do próprio Senhor."
Isso
é algo muito penetrante, que não deixará de expor a nossa
condição. À partir disso, algumas questões surgem. Como foi
que nós obtivemos aquilo que temos? Você está preparado para
meditar sobre essa pergunta? Como foi que eu obtive o meu
cristianismo? Como foi que alcancei aquilo que tenho hoje?
Como foi que isto veio até mim? Será que eu o obtive pelo
meu raciocínio? Pensei sobre este assunto da vida cristã,
chegando a uma conclusão intelectual que, comparada com
todas as outras coisas que conhecia, pareceu ser a melhor
opção. Então decidi em minha mente que o cristianismo era a
alternativa correta. Será que foi apenas uma conclusão
intelectual? Será que foi assim comigo? Será este o
fundamento sobre o qual estou apoiado?
Será
que a vida cristã que tenho veio a mim por meio de uma
personalidade forte? Posso ter conhecido algum mestre ou
algum líder dotado de uma personalidade muito forte e ter
ficado sob o impacto daquela personalidade. Nesse caso, eu
teria recebido meu cristianismo por meio da personalidade
forte do homem. Será que este é o fundamento sobre o qual
você está firmado? Será que ele veio por meio da persuasão
de outras pessoas? Elas me disseram que eu deveria
achegar-me a Cristo e insistiram nisso até que, um dia, eu
deixei-me levar pela persuasão deles. Portanto, eu passei a
professar o cristianismo, fui batizado e este é o fundamento
no qual estou firmado.
Como
obtivemos aquilo que temos? Isso vai decidir todas as coisas
no futuro. Mais cedo ou mais tarde, as pressões da vida se
lançarão sobre a nossa posição. O Senhor permitirá que a
posição que assumimos seja testada em meio ao fogo. Seu
objetivo ao fazer isso é identificar com precisão o
fundamento no qual estamos apoiados. Portanto, Paulo disse:
"Eu não o recebi de homens, nem de um homem em especial.
Pedro pode ter sido um homem muito importante, mas eu não o
recebi dele. Tiago pode ter sido o irmão do Senhor na carne,
e ele O conhecia muito bem, mas o que tenho não recebi dele.
João foi um discípulo marcado por sua devoção e amor, além
de ter sido um dos três primeiros discípulos, mas eu também
não obtive o que tenho dele. Estes homens nada me
acrescentaram, pois eu recebi por revelação direta de Jesus
Cristo." Esta é a base da presente dispensação. Esta é a
base do verdadeiro cristianismo espiritual. Esta é a grande
marca que distingue um sistema legal de uma vida espiritual.
Seguindo adiante, temos que considerar a crise que se
desenrolava por trás do apostolado de Paulo. Queremos
permanecer no âmbito da epístola aos Gálatas e, nesse
momento específico, queremos permanecer na esfera do
testemunho de Paulo, pois seu testemunho é a base do que
estamos considerando. Por trás do apostolado de Paulo
ocorria uma crise tremenda. Vejamos Gálatas 1:13: "Porque
ouvistes qual foi o meu proceder outrora no judaísmo, como
sobremaneira perseguia eu a igreja de Deus e a devastava".
Você
precisa pronunciar isso com bastante ênfase, pois foi assim
que Paulo o disse. Imagine Paulo dizendo esse tipo de coisa:
"meu proceder no judaísmo"! Paulo era judeu de nascimento,
havendo sido criado e guardado no judaísmo. Eu gostaria de
contemplar sua expressão facial quando ele disse: "no
judaísmo" ou seja, "na religião dos judeus". Isso descreve
como Paulo vivia no passado. O que ele diz em seguida? "Eu
sobremaneira perseguia o cristianismo?" "Eu perseguia a
religião cristã?" Não! Ele diz o seguinte: "Eu perseguia a
igreja de Deus e a devastava; no judaísmo, eu progredira
mais do que muitos de meus conterrâneos da minha idade,
sendo extremamente zeloso das tradições de meus pais". É
necessário que você ponha suficiente ênfase sobre tudo isso
e perceba o que todas estas coisas significavam para Paulo,
ou Saulo de Tarso, como era antes conhecido. Caso contrário,
você não terá condições de avaliar a tremenda crise que
ocorreu em sua vida e que estava por trás de seu apostolado.
Veja
bem: o que ocorrera era uma crise, e não um desenvolvimento.
Tratava-se de uma crise, e não de uma evolução. Foi algo
súbito que aconteceu num momento específico. Houve uma crise
na vida deste homem. Esta crise resultou na divisão de toda
a sua vida entre o que ficara no passado e o que estava no
futuro. Para ele, isso significava o término de todo um
sistema e o princípio de um nova ordem totalmente celestial.
Retornaremos a este ponto mais adiante.
O
próximo aspecto a ressaltar relaciona-se com algo que já
abordamos: o ato soberano de Deus. Jesus Cristo levantou-se
de Seu trono na glória e veio diretamente encontrar-se com
este homem. Portanto, foi uma ação soberana do céu. No
entanto, ao mesmo tempo, havia algo sobre o qual Deus podia
operar. Havia algo nesse homem que forneceu ao Senhor a base
para atuar. Não se tratava de mérito, mas havia algo naquele
homem. De que se tratava? Peço que todos prestem muita
atenção nisso: Deus encontrou um lugar para operar neste
homem porque ele era um homem que levava Deus a sério.
Você
deve lembrar que embora Saulo de Tarso estivesse fazendo a
coisa errada, ele o fazia de acordo com a luz de sua
consciência. Posteriormente, ele afirmou que fez isso em
ignorância, pensando que estava servindo a Deus. Embora sua
mente estivesse em trevas e sua conduta fosse equivocada,
ele era um homem que levava Deus a sério. Em sua ignorância,
ele fazia aquilo para Deus. Ele pensava que aquilo era o que
Deus desejava. Em um sentido, Saulo tinha um coração por
Deus, e nisso não havia erro algum. Seu zelo, como ele mesmo
o descreve, era muito grande por aquilo que ele acreditava
ser para o Senhor. Portanto, havia uma base sobre a qual
Deus podia operar.
Guarde bem isso: aqueles que são indiferentes e não se
importam muito nunca irão longe com o Senhor. Se as coisas
não são muito importantes para nós, o Senhor também não se
importa muito. Existe um versiculo no Antigo Testamento que
diz: "Para com o benigno, benigno te mostras; com o íntegro,
também íntegro. Com o puro, puro te mostras; com o perverso,
inflexível" (Salmo 18:25-26). Deus será para nós aquilo que
nós somos para Ele. Se somos indiferentes, se não nos
importamos muito, se somos descuidados, o Senhor não virá a
nós do modo como veio a Paulo.
Se
você observar aqueles homens e mulheres que tiveram grande
valor diante de Deus, notará que no início de sua caminhada
houve uma crise muito séria. Algumas dessas pessoas passaram
por dias, semanas e meses de dores de parto espirituais até
o término da crise. Eles choraram diante de Deus dia e
noite, mas parecia que Deus não estava percebendo nada.
Chegou o momento em que aquilo tornou-se uma agonia
absoluta, de modo que eles chegaram ao ponto de preferir a
morte do que estar sem a presença de Deus. O que o Senhor
estava fazendo por meio disso? Ele estava obtendo a base da
realidade. Ele estava testando estas pessoas para saber se
elas O queriam apenas para seu próprio benefício e
satisfação ou se O queriam por causa de Sua própria pessoa.
Um
jovem muito rico veio a Jesus e disse-lhe: "Bom mestre, que
posso fazer para herdar a vida eterna"? A impressão que
recebemos é como se Jesus fizesse um jogo com ele.
Primeiramente, Ele disse: "Por que me chamas bom? Só há um
que é bom, o qual é Deus. Há um teste muito real na
afirmação que você fez. Você percebe que Eu sou Deus? Você
está me colocando no mesmo plano que Deus? Só há um bom, o
qual é Deus". Então o Senhor prosseguiu: "Você sabe o que
está escrito na lei: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração, e amarás o teu próximo como a ti mesmo". Com essa
pergunta, o Senhor está buscando expor o interior desse
jovem. Ele responde: "Tudo isso tenho observado desde a
minha juventude". Muito bem, uma vez que o jovem disse isso,
veremos sua resposta ser submetida ao teste imediatamente.
"Vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me. Venha
e siga-me sem trazer coisa alguma. Siga-me sem um centavo no
bolso e sem reputação. Será que a vida eterna é mais
importante do que tudo o que você pode ter neste mundo?"
Aqui você nota que o Senhor havia achado o ponto específico.
A pergunta foi: "O que devo fazer para alcançar a vida
eterna?" A resposta do Senhor foi: "Por que você quer a vida
eterna? Será que ela é mais importante para você do que
todas as coisas desse mundo? Você está preparado para deixar
todas as coisas desse mundo para trás pela vida eterna?" O
jovem baixou sua cabeça, soltou os braços, deu meia-volta e
silenciosamente retirou-se. Você percebe qual é o ponto
principal nessa situação? O Senhor deseja saber se nós
realmente o levamos a sério.
Não
alcançaremos nada a menos que levemos Deus realmente a
sério. Pode ser que estejamos errados em nossa maneira de
viver. Pode ser que nossas mentes estejam em densas trevas
mas, ainda assim, podemos estar mostrando que levamos a
sério o nosso Deus. O encontro com Saulo foi um ato soberano
de Deus, mas o Senhor tinha uma base em sua vida no qual Ele
podia operar. O zelo de Saulo, embora desorientado, tinha
significado para Deus. Qual é nossa atitude para com o
Senhor e para com as coisas do Senhor? Será que estamos com
o coração dividido nesse assunto? Será que estamos
sonolentos? Ou será que estamos indo adiante com força
total, dizendo: "Irei alcançar aquilo que o Senhor quer para
mim. Não importa o quanto isso me custe, meu coração está
colocado naquilo que o Senhor quer para minha vida." Essa é
a crise que há por trás de Paulo.
Capítulo 3
Continuaremos nossas considerações da grande questão
fundamental relacionada a verdadeira natureza desta
dispensação. O cristianismo é um sistema legal ou uma ação
espiritual do céu? Já vimos que esta questão tornou-se um
intenso campo de batalha desde o princípio. Foi por causa
desta questão que Estêvão foi martirizado. Seu grande
sucessor, o apóstolo Paulo, tornou-se o ponto focal desta
batalha. Portanto, estamos com a epístola aos Gálatas aberta
diante de nós, buscando ver aquilo que o apóstolo tem a
dizer-nos sobre este assunto. Tendo em vista que Paulo foi
colocado no centro da controvérsia, torna-se necessário
voltar nossa atenção à sua pessoa. Até agora, examinamos a
origem de seu apostolado. Paulo declarou que seu chamamento
não vinha da parte de homens, nem por intermédio de homem
algum, mas por revelação de Jesus Cristo. Ele era um
apóstolo de Jesus Cristo e de Deus Pai. Em seguida tratamos
da grande crise que estava por trás de seu apostolado. O
tema que iremos considerar agora é a constituição do
apostolado de Paulo. Para isso vejamos alguns versículos de
Gálatas:
"Quando Deus, porém, que desde o ventre de minha mãe me
separou e me chamou por sua graça, se agradou em revelar seu
Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios..." (Gl
1:15, 16a). Novo Testamento - Almeida Século XXI (Edições
Vida Nova, 2005).
Paulo diz que "agradou a Deus revelar seu Filho em mim". A
seguir, vejamos um trecho bem conhecido desta epístola:
"Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem
vive, mas Cristo vive em mim; e esta vida que agora vivo na
carne, eu a vivo na fé, a fé que está no Filho de Deus, que
me amou e a si mesmo se entregou por mim" (Gl 2:19b-20).
Versão em português da tradução inglesa usada pelo autor (American
Standard Version, 1901).
Precisamos lembrar-nos de que o ponto importante para nós é
que esta experiência espiritual do apóstolo Paulo contém
todos os princípios da nova dispensação. Se perguntarmos o
que é o verdadeiro cristianismo, veremos que a resposta se
encontra na história espiritual deste homem. A dispensação
na qual vivemos está fundamentada nestes princípios. Aquilo
que constitui a presente dispensação é o mesmo que constitui
o apostolado de Paulo. Depois de afirmar enfaticamente que
não o recebeu de homens, nem mesmo daqueles que eram
apóstolos antes dele, Paulo vai diretamente ao coração deste
assunto e diz: "agradou a Deus revelar seu Filho em mim".
Portanto, a presente dispensação é fundamentada numa
revelação interior de Jesus Cristo. Se nós quisermos saber o
que é isso no qual supostamente entramos, essa é a resposta.
Nossa verdadeira vida cristã se fundamenta numa revelação
interior do Filho de Deus. O apóstolo Paulo havia percebido
o imenso significado do Filho de Deus. Aqui temos um homem
que estava totalmente embriagado com Cristo Jesus. Em todas
as coisas ele via a Cristo. Como já dissemos anteriormente,
o nome "Jesus Cristo" ocorre 43 vezes nesta breve epístola.
Primeiramente temos "agradou a Deus revelar seu Filho em
mim" e, em seguida, "estou crucificado com Cristo; logo, já
não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim". Na cruz de
Cristo, um homem chamado Saulo de Tarso desapareceu. A cruz
mandou embora um tipo de homem, enquanto a ressurreição
introduziu outro tipo de homem. Este novo tipo de homem é
Cristo, que toma o lugar de Saulo de Tarso.
Este
fato é fundamental, constituindo a base de toda a
dispensação. Quão imensa seria a diferença se víssemos a
Cristo como Paulo O viu! É muito difícil concebermos isso em
nossa imaginação. Paulo havia compreendido quem era Jesus de
Nazaré. Na estrada de Damasco ele perguntou: "Quem és tu,
Senhor?" Jesus lhe respondeu: "Eu sou Jesus de Nazaré". Ele
não disse: "Eu sou o eterno Filho de Deus". Ele também não
disse: "Eu sou o Deus que se tornou carne". Ele disse: "Eu
sou Jesus de Nazaré". Paulo ficou prostrado no chão,
impotente e cego. O fulgor daquela glória o fez cair por
terra. Naquele momento aquele homem indagou-se: "Este é
Jesus de Nazaré em toda essa glória e poder? Tudo isso tem a
ver com Jesus de Nazaré?" De fato, é muito difícil que nós
entendamos isso. Você deve lembrar algumas das coisas que
Paulo posteriormente escreveu sobre Cristo. Quando escreveu
aos Filipenses, ele falou de Jesus como aquele que desde a
eternidade é igual a Deus. Paulo afirma: "Ele é igual a
Deus" (ver Fp 2:5). Ao escrever aos Colossenses, ele
forneceu um quadro inigualável de Cristo: "Ele é antes de
todas as coisas. Nele foram criadas todas as coisas, nos
céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam
tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades.
Tudo foi criado por meio dele e para ele. Agradou ao Pai que
nele residisse toda a plenitude" (ver Cl 1:15-19). Este é
Jesus de Nazaré e aqui vemos que Paulo havia compreendido o
significado do Filho de Deus.
Pense de novo a respeito de todas estas afirmações que
mencionamos. Aquele que é igual a Deus, o instrumento e o
herdeiro de toda a criação! Aquele no qual, pela vontade do
Pai, todas as coisas subsistem! Aquele que, por desígnio do
Pai, iria ter a primazia em todas as coisas! Há muitas
outras afirmações de Paulo como estas sobre a pessoa de
Jesus. Pois foi justamente este a quem Saulo de Tarso, seus
amigos e sua nação crucificaram. Eles perseguiram e
crucificaram a Deus manifestado na carne. Eles perseguiram e
crucificaram Aquele que criou todas as coisas. Você percebe
quão grande é este Homem? Contudo, aqui temos um pequeno
homem que O está crucificando. Será que você consegue
penetrar nessa situação? Será que você pode entender tudo
que este homem sentiu quando percebeu quem era Jesus de
Nazaré? Não é de se admirar que Paulo quisesse ser liberto
de um sistema que pode fazer tal coisa. Todo o seu ser
clamou: "Quero ser emancipado disso! Quero fugir de um
sistema que é capaz de fazer isso". Não deve surpreender-nos
que a palavra "liberdade" seja um termo tão grande para
Paulo. Do mesmo modo, não deve surpreender-nos que ele
estivesse tão irado a respeito desse sistema.
Na
carta aos Gálatas, Paulo diz: "Ainda que nós ou mesmo um
anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que
vos temos pregado, seja anátema" (Gl 1:8). Em seguida, Paulo
repete tudo de novo. "E agora repito...", diz ele (Gl 1:9).
Quão irado Paulo estava! O evangelho consistia na boa nova
de Deus em relação a Seu Filho. Jamais, em todos os seus
escritos, vamos encontrar Paulo tão irritado como nessa
carta. Parece que ele jogou fora toda a discrição. Ele lança
fora toda possibilidade de concessões. De fato, ele diz:
"Não pode haver qualquer concessão para com um sistema que
tenha feito o que este fez". O legalismo sempre crucifica a
Cristo novamente, pois ele elimina a maior palavra do
cristianismo. A palavra que deve estar sobre a porta do
verdadeiro cristianismo é "graça". O legalismo sempre apaga
esta palavra e coloca em seu lugar a palavra "lei". "Graça"
é a principal palavra no vocabulário do cristão.
Onde
quer que o legalismo alcance sua expressão máxima, ele
sempre coloca o crucifixo no lugar do túmulo vazio. O
símbolo do cristão é o túmulo vazio. Isso significa vida que
nasce da morte. O símbolo do legalismo é um crucifixo, um
Cristo morto. O legalismo sempre produz morte. Todavia, a
coisa mais importante em relação a Cristo é a ressurreição.
Isso é vida que nasce da morte. Isso foi o que Paulo
conseguiu ver quando agradou a Deus revelar Seu Filho nele.
Então ele imediatamente disse: "Deixem-me sair desse sistema
legalista. Jesus de Nazaré, a quem nós crucificamos, está
vivo. Ele tem Se revelado vivo em meu coração".
A
única emancipação verdadeira de todas as formas de legalismo
é ver a Cristo. Nem mesmo todas as forças deste mundo teriam
emancipado Saulo de Tarso do judaísmo. A única coisa que
pode fazer isso foi ver a Jesus. Portanto, repito: a única
coisa que irá emancipar-nos de todas as formas de legalismo
morto é realmente ver o Senhor Jesus. Não importa a que você
esteja escravizado, seja um cristianismo tradicional morto
ou outro tipo de jugo. Se você realmente vir o significado
do Senhor Jesus, será emancipado. Nós não devemos andar por
aí dizendo às pessoas que elas devem sair de algo ou
abandonar alguma coisa a qual estejam ligadas. Seja o que
for, não nos compete dizer-lhes que devem sair de alguma
coisa e entrar em outra coisa. Gostaria de enfatizar que não
nos compete fazer isso. Se você agir assim, só vai tornar as
coisas muito piores. Uma grande medida de engano e confusão
sempre vai atrás desse tipo de atitude. Algumas pessoas
dizem: "Você deve deixar aquilo e entrar nisso". Tais
pessoas vão criar problemas e tais problemas não vão
glorificar o Senhor Jesus. O único meio pelo qual isso pode
ser feito na vida de alguém é realmente ver a Jesus.
Não
nos compete pregar sobre a igreja em primeiro lugar.
Permitam-me repetir que nossa responsabilidade não é sair
mundo afora pregando sobre a igreja. Seja no aspecto
universal ou local, não somos comissionados a sair e pregar
sobre a igreja. Nunca saberemos o que é a igreja enquanto
não tivermos visto a Jesus. Jesus é a igreja em expressão
corpórea, ou dizendo de modo contrário, a igreja é a
expressão corporativa de Jesus. Nunca poderemos entender o
que é a igreja a menos que entendamos o que Jesus é. Sem
isso, a igreja será para nós algo muito pequeno e
exclusivista. Jesus não é assim: Ele é sobremaneira grande!
Quão maravilhoso Ele é! Paulo diz que a igreja é "a
plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas". Você
sabe que o apóstolo Paulo foi o maior mestre do Novo
Testamento em relação ao tema da igreja. Entretanto, todo o
seu conhecimento da igreja foi resultado dele ter visto o
Filho de Deus.
O
começo disso tudo foi muito simples: "Saulo, Saulo, por que
me persegues"? Saulo poderia ter respondido: "Senhor, não
estou perseguindo a Ti. Estou perseguindo estes cristãos".
Se ele tivesse respondido assim, Jesus lhe teria dito: "É a
mesma coisa. Eu e estes cristãos somos um corpo. Você não
pode tocar um membro do meu corpo sem tocar a mim". Esse
fato é muito real em relação ao corpo físico. Por exemplo,
você tira seus sapatos e vai caminhar descalço no piso. Há
ali um alfinete e você pisa nele com o dedo mínimo de seu
pé, a parte mais remota, a menor extremidade de todo o seu
corpo. Rapidamente você levanta o pé, pois aquilo dói. Como
você sabe que aquilo o feriu? Isso ocorre porque a
extremidade mais remota de seu corpo tem um relacionamento
com a cabeça. Quando você diz que aquilo doeu, você o faz
com sua cabeça. De fato, você não pode tocar a parte mais
remota de um corpo humano sem tocar a cabeça. Todo o sistema
nervoso do corpo físico está centrado na cabeça. Portanto,
Jesus teria dito: "Tocar um membro e tocar a cabeça é a
mesma coisa. Se você tocar no menor de Meus filhos, estará
tocando em Mim". Minha impressão é que Saulo de Tarso nunca
teve uma surpresa tão grande como ao ouvir Jesus dizer isso.
Naquele momento, lhe foi mostrado que tocar qualquer simples
cristão sobre a terra era tocar no Filho de Deus
glorificado. O princípio de seu entendimento sobre a igreja
ocorreu neste momento. Não há nada de natureza legal nisso,
pois tudo é muito espiritual.
Se
realmente virmos o Senhor Jesus, seremos emancipados. Alguns
de nós tiveram essa experiência. Estávamos em sistemas
legalistas e nosso horizonte era aquele sistema. Houve então
o dia em que o Senhor abriu nossos olhos para realmente
vermos o significado de Cristo. Todo aquele sistema caiu por
terra como sendo algo absurdo. De fato, não nos compete
dizer aos outros que saiam daqui para entrar ali. As
palavras no imperativo ("farás" tal coisa ou "não farás" tal
coisa) não pertencem ao contexto em que vivemos. Elas
pertencem ao velho âmbito legal. Os imperativos se tornam
algo espiritual, interior e não algo legal.
Certamente podemos dizer que havia um imperativo, um sentido
de obrigação no espírito de Paulo. "Eu vi o Senhor. Eu estou
vendo mais e mais do que o Senhor é. Isso está criando em
mim este grande imperativo." Então Paulo diz: "Uma coisa
faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e
avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o
alvo, para o prêmio da soberana vocação..." (Fp 3:13-14).
Portanto, nós não dizemos: "mude seu sistema"; mas em lugar
disso dizemos: "Peça ao Senhor para revelar Seu Filho em
você". A partir daí, a grande obra de emancipação irá
começar.
Pergunto-me se você já percebeu que sempre que Deus opera um
novo mover, Ele o faz com base em Seu Filho. Seja este mover
uma nova fase por inteiro de Seu propósito ou o resgate de
algo que foi perdido, Deus sempre põe Seu Filho à frente de
tudo. O início da Bíblia nos mostra Deus criando um novo
mundo. Tudo que Ele faz é no Filho, por meio do Filho e para
o Filho. O Filho de Deus é o agente, o instrumento e o
padrão da criação. Mais tarde, quando Deus estava iniciando
um novo mover, Ele constituiu a vida de Abraão com base em
Seu Filho. Passo a passo, Deus conduziu Abraão até o clímax.
Quando aconteceu este clímax? "Toma teu filho, teu único
filho a quem amas, e oferece-o em holocausto." Este foi o
ponto culminante da vida de Abraão. Toda a sua vida foi
concentrada naquele momento. Ao dar aquele passo, Abraão
penetrou diretamente no coração de Deus. "Porque Deus amou
ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito...". O
mover de Deus iniciado com Abraão teve como base o Filho de
Deus.
Em
seguida, o grande passo no mover de Deus ocorreu com a nação
de Israel, que estava sob escravidão no Egito. A emancipação
de Israel da escravidão teve como base a Páscoa: o sangue e
a carne do cordeiro pascal. Deus colocou Seu Filho bem no
princípio da vida nacional. Após livrá-los da escravidão com
base em Seu Filho, Deus os constituiu como nação no deserto,
igualmente com base em Seu Filho. O tabernáculo no deserto é
uma representação abrangente e detalhada do Filho de Deus.
Muitos anos depois, quando a nação havia se desviado do
Senhor e todos os apelos que lhe haviam sido feitos tinham
falhado, Deus levantou os profetas. Alguns deles
profetizaram até o cativeiro, enquanto outros profetizaram
sobre o que viria após o cativeiro. Entretanto, estes dois
grupos de profetas sempre tiveram o Senhor Jesus em vista.
No capítulo 53 de Isaías temos o grande quadro do Filho
sofredor e Servo do Senhor, o qual fala do período após o
cativeiro. Há também as palavras do profeta Miquéias a
respeito do Filho que estava para vir e de tudo que Ele
significaria. Como você pode ver, a história do povo de
Israel estava baseada na apresentação do Filho de Deus.
Depois disso, o grande movimento de Deus neste mundo foi o
Novo Testamento, que se inicia com a encarnação do Filho de
Deus. Logo em seguida vem a Sua ressurreição. Este movimento
segue adiante para mostrar que o significado pleno do Filho
de Deus deve ser manifestado por meio da igreja. Portanto,
vemos que o Filho de Deus está sempre em vista. Cada
movimento novo de Deus se realiza por meio de uma
apresentação viva de Cristo.
Nos
primeiros três capítulos do livro de Apocalipse, Cristo
busca trazer as igrejas de volta à sua posição espiritual
original. Trata-se de um movimento que busca por as igrejas
à prova e resgatar aquilo que fora perdido. Por causa disso
encontramos no primeiro capítulo aquela incomparável
apresentação de Cristo. Quão maravilhosa é aquela descrição
de Cristo! Leia de novo esta porção da Apocalipse e você
perceberá que cada detalhe ali apresentado corresponde a
algum aspecto de Cristo. É uma apresentação simbólica e
abrangente do significado de Cristo. Creio que é bastante
evidente para todos nós que, desde a criação no livro de
Gênesis até o fim, no livro de Apocalipse, Deus sempre Se
move com base em Seu Filho.
Retornemos a Paulo, onde temos um novo e poderoso movimento
de Deus. Ele consiste na emancipação de um povo de toda
forma de morte vinda do legalismo. Nos dias de Cristo, as
pessoas estavam tão escravizadas ao legalismo quanto Israel
havia estado em escravidão no Egito. Deus havia dito a
Moisés: "Eu tenho visto a aflição do Meu povo, tenho ouvido
seu clamor sob seus feitores e vim para libertá-lo.
Portanto, vai, que Eu te enviarei". Nos dias de Cristo, o
mesmo Deus viu a escravidão do povo àquele sistema
legalista, sob o jugo do qual as pessoas viviam cansadas e
sobrecarregadas. O mesmo Deus disse: "Eu vim para
libertá-los". Foi como se Ele se voltasse para Paulo e
falasse: "Vai, pois Eu te enviarei". Aquele homem era um
vaso escolhido para a libertação do povo de Deus. Isso
mostra como este assunto era importante aos olhos de Deus.
Todas estas coisas estão concentradas nas seguintes palavras
de Paulo: "Agradou a Deus revelar Seu Filho em mim. Estou
crucificado com Cristo em relação a todo este sistema
legalista. É verdade que estou vivo; contudo, não sou mais
eu, mas Cristo vive em mim". Este é mais um capítulo naquela
grande questão: O que é o cristianismo? É um sistema legal
imposto ao povo de Deus? Ou trata-se de uma grande ação
libertadora vinda do céu? Encontramos a resposta disso em
outra pergunta: será que nós realmente vimos o Senhor? Será
que percebemos qual é o significado de Cristo? Somente com
uma resposta positiva a estas perguntas é que poderemos ser
um povo liberto.
Precisamos encerrar esta parte por aqui. Em seguida, iremos
tratar daquilo que considero ser um dos aspectos mais
importantes de todo este assunto: a diferença real e
fundamental entre a velha e a nova dispensação. Minha
sugestão é que você leia a epístola aos Gálatas uma vez mais
antes de entrarmos nesta seção.
Capítulo 4
Chegamos agora à parte que sinto ser das mais importantes
dentre aquilo que temos compartilhado. Todavia, meu temor é
que ela seja a parte mais difícil de compreender.
Confiaremos no auxílio do Senhor para conosco nesse sentido.
Temos visto que na epístola aos Gálatas está concentrada a
grande mudança que ocorreu com a vinda do Senhor Jesus. A
vinda de Cristo a este mundo mudou as dispensações e
transformou completamente a natureza das coisas. Portanto,
Cristo ocupa a posição de um divisor de dois sistemas. Todo
o sistema do judaísmo, que existiu até o tempo da Sua vinda,
foi posto de lado quando Ele veio ao mundo. Desde então,
conforme o próprio Senhor disse, uma nova ordem foi
estabelecida. Isso é expressado pelo uso freqüente que Ele
faz da expressão "a hora vem e já chegou".
Iremos considerar agora a natureza essencial desta grande
divisão, ou seja, como a nova dispensação e a nova ordem
diferem da antiga. Este é um assunto de suma importância
para nós e para todos os cristãos, se eles se dispuserem a
aceitá-lo. Na verdade, o cristianismo tal como o conhecemos
tem sido amplamente fundamentado sobre a velha dispensação.
Desse modo, a grande diferença entre o velho e o novo não
tem sido plenamente reconhecida. Vamos então dedicar-nos a
tentar entender a diferença entre a velha e a nova
dispensação.
A
própria natureza da antiga dispensação judaica colocava tudo
na esfera dos sentidos naturais. Primeiramente, ela estava
situada no âmbito dos sentidos físicos. Tudo era relacionado
com o ver com os olhos físicos, o ouvir com os ouvidos
físicos e o sentir com a mão física. Tratava-se de coisas
que podiam ser tocadas, coisas tangíveis, coisas sobre as
quais podíamos colocar nossas mãos. A antiga dispensação era
também relacionada com o olfato dos órgãos físicos. Você
percebe que as ofertas e o incenso eram relacionados com o
olfato, pois o aroma agradável podia ser sentido por eles.
Por fim, havia a experiência física, pois todas as festas
dos judeus eram relacionadas a esse tipo de experiência
externa. Não é preciso discutir isso, pois é algo
perfeitamente claro e simples.
Toda
a antiga dispensação judaica se baseava nos sentidos
físicos. Entretanto, ela não ficava somente nisso, mas
também adentrava na esfera da alma. Entendemos que a alma é
composta de três partes: razão, emoção e vontade. Nesse
sentido, a alma compreende aquilo que apela à nossa razão
natural, aquilo que apela ao nosso sentimento natural e
aquilo que apela à nossa vontade natural. Assim percebemos
que o corpo e a alma constituíam o todo do homem na antiga
dispensação. O corpo e a alma governavam tudo. Esta é a base
de tudo no Antigo Testamento. Deus adaptou todas as coisas a
esta base. Ele deu a Seu povo um tabernáculo que podia ser
visto e tocado por eles. Ele deu-lhes o incenso que podia
ser cheirado e os alimentos que eles podiam provar. Deus
constituiu todas as coisas nesta base durante a antiga
dispensação. Contudo, isso era apenas uma fase
correspondente ao jardim de infância.
Sabemos em que consiste o jardim de infância. Você reúne as
crianças pequenas e as ensina por meio de figuras e modelos,
ou seja, usando coisas que eles podem ver com os olhos e
tocar com as mãos. Essa é a natureza de uma escola no jardim
de infância. O Antigo Testamento foi todo constituído na
base do jardim de infância. Nele, Deus estava lidando com
Seu povo como crianças pequenas. Este é um resumo da
natureza de todas as coisas no antigo sistema judaico.
Vejamos agora a diferença entre este sistema e a nova ordem
espiritual.
Qual
é a essência da natureza daquilo que veio a este mundo com
Jesus Cristo? Trata-se de uma ordem espiritual. Nada mais
pode começar pelos sentidos naturais. Toda esta nova ordem
começa em outro ponto. Nesta altura, estamos nos mantendo
muito próximos da carta aos Gálatas. Talvez não seja
elegante perguntar se você tem lido esta epístola enquanto
tratamos de nosso tema. Contudo, uma das vantagens de
conhecermos a Palavra de Deus é que nos tornamos capazes de
discernir o que está certo. Você ouve alguma coisa e percebe
que já leu aquilo na Palavra de Deus. Além disso, existem
muitas outras vantagens. Nesta carta aos Gálatas, a palavra
"Espírito" ocorre 12 vezes. Essa palavra é, no todo, a chave
para a epístola. Agora, nada mais é segundo a carne, mas
segundo o Espírito. Esse fato determina que uma dispensação
essencialmente espiritual foi introduzida.
Você
há de lembrar das palavras do Senhor Jesus à mulher
samaritana. Ela havia dito: "Nossos pais adoravam neste
monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar
onde se deve adorar". Jesus então respondeu: "Mulher, podes
crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em
Jerusalém adorareis o Pai. Deus é espírito; e importa que os
seus adoradores o adorem em espírito e em verdade". Essa é a
natureza daquilo que veio ao mundo com Jesus Cristo.
Creio que sabemos, tanto pela Palavra de Deus como por nossa
própria experiência, que na presente dispensação as pessoas
não nascem segundo a carne em relação a Deus. Isso significa
que elas não são como o povo de Deus que nasceu de Abraão,
que foi o pai da nação de Israel. Hoje, estas pessoas nascem
do Espírito. Elas não são geradas pelo homem, mas pelo
Espírito. Jesus disse: "O que é nascido do Espírito é
espírito". No capítulo 12 da epístola aos Hebreus, o autor
fala sobre o "Pai de nossos espíritos" (Hb 12:9). Almeida
Revista e Corrigida (SBB, 1969); Versão Revisada de Almeida
(JUERP, 1974); Edição Contemporânea de Almeida (Ed. Vida,
1990); Almeida Corrigida e Revisada (SBT, 1994). Ele não é
pai de nossos corpos, nem é o pai de nossas almas naturais.
Ele é o Pai de nossos espíritos. Mas o que acontece quando
somos gerados do Espírito? Qual é a natureza real do novo
nascimento? Aqui está o verdadeiro significado da ação do
Espírito Santo.
O
Espírito Santo veio especialmente para criar uma ordem
espiritual que abrange todas as coisas. Ele começa a fazer
isso com o indivíduo. A palavra dada a cada pessoa é: "Você
deve nascer de novo". Aquilo que é nascido do Espírito é
espírito. Portanto, o que acontece quando nascemos do
Espírito? Já vimos antes que aqueles que nasceram da carne
na antiga dispensação eram inteiramente governados por um
conjunto de sentidos físicos. Quando somos verdadeiramente
gerados do Espírito, nós recebemos um novo conjunto de
sentidos espirituais. Em seu propósito, eles correspondem
aos antigos sentidos. Entretanto, eles são espirituais e não
físicos.
Por
meio do Espírito Santo nós recebemos uma nova capacidade de
visão. Você sabe que o Novo Testamento fala muito sobre ter
os nossos olhos abertos. Jesus referiu-se a este princípio
quando abria os olhos dos cegos. Ele estava ilustrando a
grande verdade espiritual de que na nova criação nós
adquirimos uma nova capacidade de visão. Cada verdadeiro
filho de Deus que nasceu de novo deve ser capaz de dizer:
"Eu era cego, mas agora vejo". A verdade sobre um filho de
Deus é que suas primeiras palavras são: "Agora eu vejo".
Eles receberam uma nova faculdade de visão espiritual.
Diferentes nomes são dados a isso no Novo Testamento.
Algumas vezes a expressão usada é "discernimento
espiritual", enquanto outras vezes é "entendimento
espiritual" ou "percepção espiritual". Seja qual for o nome,
o significado é o mesmo, pois implica que agora eu posso ver
algo que nunca pude ver antes. Eu tinha nascido cego quanto
ao verdadeiro significado das coisas espirituais. Contudo, o
Espírito Santo realizou o grande milagre de dar-me novos
olhos.
Isso
pode lhe parecer algo muito simples. Entretanto, não se
trata de ter visão quando você nasce e logo depois ficar
cego novamente. A expectativa é que você siga vendo cada vez
mais e mais. No plano natural, cada um de nós é capaz de ver
mais hoje do que quando nasceu. Podemos ver mais hoje do que
víamos quando éramos bebês. Progressivamente vamos vendo
mais e mais. Também deve ser assim espiritualmente. A
faculdade espiritual da visão nos colocou num mundo
inteiramente novo, que não é material, mas espiritual. Veja
o que o apóstolo diz a respeito disso: "Mas, como está
escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais
penetrou em coração humano... Mas Deus no-lo revelou pelo
Espírito..." (ver 1 Co 2:9-10). A primeira faculdade do novo
nascimento é a visão espiritual.
Você
pode perceber a diferença entre a antiga e a nova
dispensação? O povo de Israel tinha todas aquelas coisas que
eles podiam contemplar com seus olhos naturais. Eles podiam
ver o tabernáculo ou o templo. Eles também podiam ver os
sacerdotes e os sacrifícios. Eles podiam ver as festas.
Contudo, eles eram totalmente cegos para o significado
destas coisas. Por causa de sua cegueira em relação a isso,
eles crucificaram Aquele que dava cumprimento a tudo que
eles viam com seus olhos naturais. Apesar de todo o alcance
de sua visão natural, eles eram espiritualmente cegos.
Portanto, a obra inicial do Espírito Santo no novo
nascimento é dar-nos novos olhos espirituais. Talvez eu o
ofenda caso lhe pergunte se você recebeu novos olhos
espirituais. Todavia, isso é verdade não apenas quanto à
nossa capacidade de ver, mas também quanto à nossa
capacidade de ouvir.
Na
antiga dispensação, tudo o que era ouvido vinha por meio dos
ouvidos naturais. Contudo, o povo de Israel era surdo para
com a voz de Deus. O que Ele falava não ia além dos tímpanos
de seus ouvidos. Na nova ordem do Espírito, uma nova
faculdade de audição nos é concedida. Nós, cristãos, temos o
costume de usar uma expressão: "O Senhor falou comigo". Ao
dizermos isso não estamos afirmando que ouvimos algo com
nossos ouvidos naturais. Quando falo assim, estou querendo
dizer que ouvi o Senhor falar em meu coração. Isso significa
que recebi uma nova capacidade. A nova dispensação é
construída sobre este princípio.
Ao
dizer uma parábola, Jesus concluía dizendo: "Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça". Você também sabe que Ele falou
assim para as sete igrejas que estavam na Ásia. Após haver
falado com cada uma daquelas igrejas, o Senhor repetiu sete
vezes a frase: "Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito
diz...". Entretanto, precisamos lembrar que esse falar do
Senhor com as sete igrejas não foi com voz audível. Aquelas
igrejas não ouviram uma voz vinda do céu, por meio de
ouvidos naturais. O que elas receberam foi o que o Espírito
disse às igrejas, e esse falar não é físico, mas espiritual.
Isso pode ser ilustrado de muitas formas.
Podemos mencionar o falar de espírito para espírito. Às
vezes encontramos um outro filho de Deus e não temos muito a
dizer com nossos lábios, mas sabemos que aquela pessoa é um
filho de Deus. Seu espírito fala com nosso espírito. Temos
uma linguagem espiritual entre nós. Sabemos que pertencemos
à mesma família. Podemos discernir o Espírito um no outro,
pois ambos recebemos essa nova faculdade de ouvir
espiritualmente. Não se trata de ouvir externamente, pois é
um ouvir interior. Logo, aquilo que é verdadeiro quanto ao
ver e ao ouvir também se aplica a todos os outros sentidos.
O
que podemos dizer sobre o olfato espiritual? Você sabe o que
é isso? Às vezes basta você ir a algum lugar e perceber algo
naquela atmosfera. Ninguém precisa dizer-lhe nada, mas você
sente que há algo errado ali. Você sente que naquele
ambiente existe morte e não vida. Não é o Senhor que está
ali, mas o homem. Não é o Espírito que está presente, mas a
carne. Você sente tudo isso com a sua faculdade de olfato
espiritual.
Em
outra ocasião, você encontra uma pessoa. Não é preciso que
você fale, nem que a outra pessoa fale, mas você percebe que
há alguma desconfiança naquela pessoa. Ela está guardando
algum preconceito e seu coração está fechado. Encontramos
pessoas que não se mostram abertas para conosco, que mostram
estar tentando enganar-nos, que estão ocultando algo de nós.
Como podemos perceber isso? Por meio do cheiro percebido
pelo sentido espiritual do olfato. Esta é uma faculdade
muito importante. Essa faculdade nos permite sentir o que é
do Senhor e o que não é dEle.
O
incenso da antiga dispensação era um aroma suave, ou seja,
algo muito agradável. A isso corresponde a faculdade
espiritual do olfato. Ela se expressa fazendo com que
percebamos algo muito agradável, uma atmosfera de vida, algo
que agrada sobremaneira ao Senhor. Portanto, essa faculdade
é um princípio de direcionamento. No plano natural, quando
vamos a um lugar em que há um mau cheiro, nós tapamos as
narinas e deixamos aquele local, pois tal atmosfera nos faz
mal. Numa ocasião desse tipo, seu nariz pode salvar sua vida
de uma febre contagiosa ou de alguma outra doença grave. O
mesmo se aplica de forma muito real na vida espiritual. Se
este sentido espiritual do olfato ou se esta faculdade de
discernimento espiritual estiver realmente viva e afiada,
saberemos o que é vida e o que é morte. Saberemos discernir
o que é saudável espiritualmente e o que traz prejuízo
espiritual.
Não
quero seguir adiante nessa linha. Apenas estou dizendo que,
ao nascermos de novo, recebemos um novo conjunto de sentidos
espirituais. Assim como os sentidos físicos governavam na
antiga dispensação, os sentidos espirituais devem governar
na nova dispensação. Ao lermos a primeira carta de Paulo aos
Coríntios, notaremos que ela foi construída exatamente sobre
essa diferença. Os cristãos de Corinto estavam vivendo com
base nas coisas naturais. Portanto, eles não estavam vivendo
segundo o discernimento espiritual. Paulo então teve que
dizer-lhes: "Ora, o homem natural não aceita as coisas do
Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode
entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente".
Então ele adiciona: "Mas o que é espiritual discerne bem
tudo, enquanto ele por ninguém é discernido" (1 Co 2:14-15).
Versão Revisada de Almeida (JUERP, 1974). O homem espiritual
é um mistério para o mundo.
Um
homem ou uma mulher espiritual constituem-se num mistério
para o mundo, pois as pessoas do mundo não podem
entendê-los. Paulo ilustra esse fato da seguinte maneira:
"Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu
próprio espírito, que nele está?" Se você e eu queremos nos
entender como seres humanos, então precisaremos ser seres
humanos possuidores da natureza humana. Outros tipos de
seres criados não são capazes de entender os seres humanos.
Os homens entendem uns aos outros simplesmente porque são
homens. Do mesmo modo Paulo afirma: "Nenhum homem entende as
coisas de Deus, senão o Espírito de Deus que nele está" (ver
1 Co 2:11).
Precisamos agora entrar naquilo que penso ser a parte mais
difícil de tudo. Vamos ver o capítulo quatro da epístola aos
Hebreus. O versículo 12 nos diz assim:
"Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante
do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto
de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para
discernir os pensamentos e propósitos do coração" (Hb 4:12).
Nesta oportunidade, iremos nos concentrar apenas na primeira
parte do versículo, enfatizando o seguinte aspecto: a
Palavra de Deus é viva e eficaz, penetrando até efetuar a
separação entre alma e espírito.
Percebemos que a afirmação começa com a conjunção "porque".
Isso mostra que o versículo está relacionado com algo que o
autor estava dizendo logo antes. Qual era seu assunto? Ele
falava sobre a jornada de Israel no deserto e seu fracasso
quanto a entrar na terra prometida. Hebreus nos diz que, se
Josué lhes houvesse dado descanso, não lhes teria falado
mais tarde de outro descanso. Ele está nos dizendo que
Israel segundo a carne não conseguiu entrar no descanso de
Deus. Eles falharam em entrar no propósito para o qual Deus
os havia tirado do Egito. Com exceção de dois homens, toda
aquela geração morreu no deserto. Eles não puderam entrar no
propósito que Deus estabelecera ao redimí-los.
Portanto, temos o versículo (Hb 4:12), temos seu contexto e
também temos a conjunção inicial. "Porque a palavra de Deus
é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de
dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e
espírito." O que isso significa? O velho Israel vivia
inteiramente na base da vida natural e dos sentidos
naturais. Tudo para eles se relacionava ao que podiam ver e
tocar aqui nesta terra. Sua vida era inteiramente no plano
da alma. Segundo o autor de Hebreus, foi por causa disso que
eles não puderam entrar no descanso. A Palavra de Deus
sempre separa com precisão a alma e o espírito.
Na
nova dispensação, o novo povo que vai entrar em todo o
propósito de Deus deve ser um povo espiritual e não um povo
que anda segundo a alma. Eles precisam ser constituídos com
base no que é espiritual e não com base nas coisas naturais.
Toda a carta aos Hebreus é construída sobre uma diferença
que há entre o velho e o novo. É preciso bastante espaço
para mostrar onde a antiga aliança falha. A antiga lei
falha, o antigo sacerdócio falha, os antigos sacrifícios
falham, o antigo tabernáculo falha e o antigo templo falha.
O fracasso foi completo, pois tudo foi construído numa base
natural, a base da alma. Contudo, o novo não irá falhar e a
carta aos Hebreus introduz a nova ordem. O sumo-sacerdote
está no céu, um único sacrifício foi oferecido para sempre e
assim por diante. Há uma ordem espiritual em tudo, sendo que
a Palavra de Deus opera a divisão entre as duas ordens.
Quando chegamos ao final da epístola aos Hebreus, vemos o
autor fazer a seguinte afirmação: "Tínhamos os nossos pais
segundo a carne, que nos disciplinavam segundo lhes parecia
bem e nós os reverenciávamos" (ver Hb 12:9). Segundo a
versão em inglês usada pelo autor (American Standard
Version, 1901). Em português, ver a edição corrigida e
revisada de Almeida (Soc. Bíblica Trinitariana, 1994). Me
pergunto se isso é verdadeiro com todos nós. Quando nossos
pais segundo a carne nos davam uma boa surra, nós os
reverenciávamos? Será que nós agradecíamos a eles? Pelo
contrário, ficávamos muito chateados com nossos pais segundo
a carne. Ao nos tornarmos adultos, passamos a reconhecer que
nossos pais estavam certos, pois a disciplina foi a melhor
coisa para nós. Todavia, o apóstolo diz: "Tínhamos os nossos
pais segundo a carne, que nos disciplinavam segundo lhes
parecia bem e nós os reverenciávamos. Não havemos de dar
muito maior reverência e estar em muito maior submissão ao
Pai dos espíritos e, então, viveremos?" Vemos como o
princípio se aplica no plano natural, inferior. O princípio
espiritual é muito mais elevado: Deus é o Pai de nossos
espíritos!
Isso
é o que ocorre quando nascemos de novo. Não são nossas almas
que nascem de novo, mas nossos espíritos. Aquela parte mais
interior de nosso ser morreu com Adão, ou seja, foi separada
de Deus quando Adão pecou. Por causa disso, todos os filhos
de Adão são por natureza mortos no sentido espiritual.
Nossos espíritos morreram com Adão, mas em Cristo eles são
vivificados novamente. O novo nascimento não é um renascer
do corpo físico e também não é um novo nascimento da alma.
Trata-se do novo nascimento de nosso espírito, sendo que
Deus é o Pai de nossos espíritos. É por isso que, na carta
aos Gálatas, que demarca a grande separação, procurei
ressaltar o fato de que a palavra "espírito" ocorre 12
vezes. Deus é o Pai de nossos espíritos e, portanto, não
somos filhos de Abraão, mas filhos de Deus e isso faz uma
grande diferença.
Este
é o tema da argumentação de Paulo na epístola aos Gálatas.
Vejam o que ele diz: "Ó gálatas insensatos! Quão tolos vocês
são! Vocês começaram no Espírito e agora estão voltando para
a carne. Vocês saíram da antiga dispensação e da antiga
ordem para entrar na nova vida do Espírito, mas agora estão
retrocedendo e perdendo seu direito ao descanso, perdendo o
propósito de sua redenção. Ó gálatas insensatos! Que coisa
mais tola é viver na antiga dispensação!"
Nesse sentido, é preciso que notemos que o cristianismo com
o qual estamos familiarizados é amplamente constituído com
base na antiga dispensação. Seria necessário mais tempo para
demonstrar isso de forma plena. Contudo, será que percebemos
como o cristianismo opera em nossos dias? Ele começa
erguendo edifícios religiosos que são chamados de "igrejas".
Trata-se de um nome absolutamente falso, pois a igreja não é
um edifício feito por mãos humanas. Em seguida, um certo
tipo de ordem é estabelecido. Logo depois, algumas pessoas
são designados para cuidar da obra. Quando este grupo de
pessoas termina seu edifício, escolhe seus diretores, o
ministro e todos os outros cargos e define como as coisas
serão feitas, então eles pedem ao Senhor que venha para
estar presente ali com eles. A organização e as coisas
externas vem antes de tudo. Tudo está construído sobre o
princípio da alma. Tudo está relacionado à razão, à emoção e
à vontade. Este é o cristianismo judaizante. O método de
Deus é justamente o inverso disso.
Em
que ponto Deus inicia tudo? Ele não começa com igrejas,
mesmo que elas sejam grupos de pessoas. Obviamente, Deus não
começa por edifícios, assim como não o faz por um ritual ou
um sistema de fazer as coisas. Ele também não começa
reunindo uma congregação. Deus começa gerando um, dois ou
três por meio do novo nascimento. Deus começa por uma obra
do Espírito Santo em vidas individuais. Pode ser que tudo
comece com uma pessoa somente e depois outra e logo mais
outra. Se estes três se encontram na mesma cidade, eles
estão juntos, não por terem aceitado o cristianismo, mas por
terem em si o mesmo Espírito. Assim começa a igreja naquele
lugar e aquilo que foi verdade para o princípio tem que ser
verdade para todo o resto que vem depois.
As
mãos do homem devem ser mantidas fora das coisas do
Espírito. O homem não deve tentar formar algo que é do
Espírito. O próprio Espírito Santo que começou a obra é
perfeitamente capaz de formar aquilo que Ele quer. Portanto,
nossa responsabilidade é ser guiados pelo Espírito, buscar
sempre a direção do Espírito e, até que tenhamos certeza de
que o Espírito está realmente nos dirigindo, manter nossas
mãos fora da obra de Deus. Não faremos nada sem essa
certeza, pois aquilo que está sendo feito tem que ser do
Espírito. Esta é a ordem da presente dispensação.
Será
que percebemos a diferença entre o princípio de tudo e a
situação hoje em dia? Nos primeiros 30 anos do cristianismo,
o evangelho se espalhou por todo o mundo da época. Haviam
igrejas em quase todos os países do mundo. Elas estavam por
todo o império romano e em territórios sujeitos à autoridade
romana. Milhares e milhares foram unidos ao Senhor. Isso foi
algo maravilhoso que levou apenas 30 anos para ser
realizado. Desde então, 2.000 anos se passaram. Enviamos
multidões de missionários pelo mundo inteiro. Gastamos
milhões em dinheiro com divulgação. Temos trabalhado
intensamente. Contudo, nesses 2.000 anos, não há nada que se
possa comparar com aqueles 30 anos. Se aquilo que ocorreu
nos primeiros 30 anos tivesse continuado por 2.000 anos, o
Senhor já teria retornado há muitos anos atrás. Por que as
coisas não continuaram daquele modo? Porque tudo foi trazido
de volta à base da alma e não numa base espiritual. Quando
as mãos dos homens estão fora e tudo está nas mãos do
Espírito Santo, as coisas espirituais se realizam.
Meu
encargo é que haja algo dessa natureza no lugar em que
vivemos. Se aquilo em que estamos envolvidos é totalmente do
Espírito, veremos que algo irá acontecer. Toda a cidade
saberá e as pessoas irão comentar a respeito disso. O
inimigo será incitado a levantar-se em oposição. É sempre um
bom sinal quando o inimigo sente que há algo contra o qual
ele tem que lutar. Ele sabe que aquilo contra o qual ele se
levanta significa algo contra o seu reino.
Precisamos parar neste ponto, embora não tenhamos concluído
esta parte do assunto. Apesar disso, não devemos somente
ficar esperando pelo final. Esta é uma palavra para nós,
hoje. Se tivéssemos que interromper tudo agora e não mais
nos víssemos nesta terra, penso que já teria compartilhado
com vocês a palavra mais vital que poderia ser dita. Tal
palavra representa a completa mudança do antigo para o novo,
do natural para o espiritual e das coisas que são dos homens
para as coisas que são de Deus.
Capítulo 5
Chegamos à última parte de nossa abordagem de uma grande
questão, que diz respeito à verdadeira natureza da
dispensação que veio com o Senhor Jesus. Portanto, é
necessário reunir tudo que vimos até aqui num só tema. Já
cobrimos um terreno muito amplo, mas tudo se concentra num
só assunto. Não se trata de colocar um sistema contra o
outro, ou seja, não é uma questão de judaísmo em oposição ao
cristianismo. Não é uma questão de legalismo contra
espiritualidade. Não é uma questão do Antigo Testamento
contra o Novo Testamento. Também não é uma questão de Paulo
contra seus inimigos. Todas estas coisas já foram abordadas
naquilo que compartilhamos, mas elas não são o nosso tema
específico.
Houve uma grande batalha que se iniciou com a vinda do
Senhor Jesus e o apóstolo Paulo foi um instrumento escolhido
para atuar nela. O motivo desta batalha não foi alguma
interpretação especial das Escrituras, nem mesmo algum tipo
particular de doutrina. Esta batalha também não ocorreu em
defesa de uma forma especial de adoração. Trata-se de uma
batalha muito maior que qualquer uma destas coisas.
Embora a epístola aos Gálatas aborde todos estes assuntos,
seu tema está concentrado em uma palavra. Toda a carta e
tudo aquilo com o qual ela trata é concentrado em um só
versículo. Se formos contar as palavras, acharemos que é um
versículo bem curto. No entanto, veremos que é um trecho de
enorme significado. Leiamos Gálatas 4:19:
"Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto,
até que Cristo seja formado em vós". Versão Revisada de
Almeida (JUERP, 1974).
Há
uma pequena alteração que deve ser feita na tradução. A
palavra "formado" deve ser traduzida "plenamente formado".
Portanto, o versículo deve ser escrito assim: "Meus
filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que
Cristo seja plenamente formado em vós."
Percebemos que toda esta batalha, em todos os seus aspectos,
está concentrada nesse tema de Cristo ser plenamente formado
em nós. Não é outra coisa senão o assunto da formação de
Cristo em plenitude. Isso diz respeito a Cristo plenamente
formado na vida de cada crente e a Cristo plenamente formado
na igreja. Portanto, notamos que tudo aquilo que
compartilhamos se concentra em uma questão. Cristo é o teste
de todo homem e de todas as coisas. Cristo é o teste da
igreja e das igrejas. Cristo é o teste de cada ensino. A
avaliação de que algo está certo ou errado se decide neste
único ponto. Quanto de Cristo podemos encontrar nisso?
Quanto do Espírito de Cristo se pode encontrar nisso?
Podemos resumir todas as nossas questões e todos os nossos
problemas nesse único ponto. Tudo sempre é uma questão de
quanto do Espírito de Cristo eu posso encontrar nas pessoas,
num ensino ou em outras coisas. Peço que vocês guardem muito
bem o que estou dizendo, pois este é o fator decisivo.
Este
foi o fator decisivo nas igrejas da Galácia. No versículo
que acabamos de ler, o apóstolo não diz que está sofrendo
dores de parto por um sistema contra outro. Igualmente, ele
não diz que sofre dores de parto por um tipo de ensino em
oposição a outro, ou por uma forma de adoração contra outra.
Paulo também não diz que sofre dores de parto por uma
interpretação do significado da igreja e das igrejas em
oposição a outra interpretação. Não vemos o apóstolo dizer
coisas como "sofro dores de parto pelo cristianismo contra o
judaísmo" ou "sofro dores de parto pela espiritualidade
contra o legalismo". Paulo nunca diz tais coisas, tanto em
aspectos particulares como em geral. Seu encargo era muito
maior do que todas estas coisas. Ele afirma: "Meus
filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que
Cristo seja plenamente formado em vós". Já mencionamos
anteriormente que o nome "Cristo" ocorre 43 vezes nesta
epístola tão breve. Esse fato é, portanto, a chave de tudo.
Isso
nos leva à maior coisa que já foi revelada por Deus ao homem
e que está centrada em uma palavra nesta epístola. A palavra
"filho" ou "filhos" ocorre seis vezes em Gálatas, sendo que
o significado da filiação é a maior coisa que Deus já
revelou ao homem. Paulo começou a carta com isso. Em Gl
1:15,16, ele diz: "Agradou a Deus revelar Seu Filho em mim".
Foi isto que ocasionou uma virada completa na vida de Paulo.
Esse fato determinou a grande mudança nele e na presente
dispensação. A revelação de Jesus Cristo, o Filho de Deus, é
o fundamento de tudo. Portanto, Paulo lança o fundamento
dizendo: "Deus revelou Seu Filho em mim".
Em
Gl 4:6 Paulo diz: "E, porque sois filhos, Deus enviou aos
nossos corações o Espírito de seu Filho...". O Espírito
Santo é o espírito de filiação no crente. O Espírito Santo é
o Espírito do Filho de Deus. Portanto, a vinda do Espírito
Santo para habitar no interior do crente faz dele
potencialmente um Filho maduro de Deus.
Prestem atenção na palavra que o apóstolo utilizou: "meus
filhinhos". Se vocês puderem ler o original grego, notarão
algo a respeito desta expressão. Paulo não diz "meus filhos
crescidos", nem mesmo chama os gálatas de "filhos", mas
emprega o termo "filhinhos". Existem duas palavras no grego
que são usadas para "filho". Uma delas é esta que foi
traduzida como "filhinhos", que se refere a alguém ou algo
que nasceu mas ainda não cresceu, ou seja, ainda é imaturo.
Há uma outra palavra grega usada para "filho", a qual se
refere aos filhos que já cresceram.
Agora podemos perceber como a epístola aos Gálatas focaliza
esta diferença. Paulo diz: "Ó gálatas insensatos!" Isso
significa: "Vocês são como crianças tolas. Vocês nasceram,
mas não cresceram. Vocês tiveram um bom começo, mas a
formação de Cristo foi interrompida". Então ele afirma que o
Espírito Santo nos foi dado com a intenção de concretizar a
plena formação de filhos.
Nesta carta, o apóstolo contrasta a antiga dispensação com a
nova nesse ponto específico. Ele diz que na antiga
dispensação Israel era apenas uma nação de criancinhas. Como
fazemos quando desejamos ensinar crianças pequenas?
Primeiramente temos que ensiná-las por meio de figuras e
modelos. Todo o ensino tem que ser dado por meio de coisas
externas a elas. As crianças aprendem pela apresentação das
coisas a elas como objetos. Além disso, elas são ensinadas
por meio de mandamentos: "Você deve fazer isso, mas não deve
fazer aquilo; se você quer ser um bom menino ou uma boa
menina, vai fazer o que estou mandando". É assim que você
trata com as crianças pequenas. O procedimento para com os
adultos é justamente o oposto disso.
Um
filho crescido não necessita que outros estejam sempre lhe
dizendo o que deve fazer. Se um filho já amadureceu, seu pai
não precisa ficar constantemente lhe dizendo: "Você tem que
fazer isso e não pode fazer aquilo". Um filho
verdadeiramente crescido sabe em seu interior o que deve
fazer e o que não deve fazer. Ele não necessita que as
coisas lhe sejam apresentadas em quadros e figuras, pois ele
próprio é capaz de discernir. Um filho que é realmente um
filho sabe em si mesmo o que seu pai aprova e o que ele
desaprova. Não é necessário que o pai fique dizendo dia após
dia: "Meu filho, essa é a minha vontade". Um verdadeiro
filho sabe em seu coração o que agradaria a seu pai.
Trata-se de intuição e não de mandamento, e essa é a
diferença.
Portanto, a distinção entre a antiga dispensação e a nova se
refere à inteligência espiritual. Afinal, esta é a diferença
entre um filho pequeno e um filho maduro. A criança não
possui a inteligência em si mesma. A inteligência está fora
dela, em outras pessoas. Contudo, um homem maduro possui a
inteligência em si mesmo. Este é o grande contraste que
Paulo enfatiza na epístola aos Gálatas. Ele afirma: "Meus
filhinhos, vocês carecem de inteligência. A verdadeira marca
da maturidade, que é a inteligência espiritual, ainda não
está em vocês".
Existe uma outra diferença entre o filho pequeno e o filho
maduro. O filho pequeno precisa que alguém faça tudo para
ele. É necessário que façamos tudo para nossos pequeninos,
sempre que eles precisarem. Providenciamos a comida, as
roupas, a família, a casa e todas as demais coisas. O filho
pequeno não provê nada para si mesmo.
O
filho maduro é diferente. Ele é capaz de assumir
responsabilidades e seu pai sabe que pode confiar nele. O
pai não precisa estar constantemente preocupado em saber se
o filho fará a coisa certa ou a coisa errada. Ele está
descansado em relação a seu filho e diz: "Eu sei que posso
confiar nele e dar-lhe responsabilidades, pois ele está
capacitado para assumí-las".
Ao
longo da história de Israel no Antigo Testamento, podemos
ver como eles eram irresponsáveis. Faça uma retrospectiva da
história de Israel durante a peregrinação no deserto e nas
épocas posteriores. Eles sempre precisavam que tudo lhes
fosse providenciado. Eles sempre necessitavam que lhes
dissessem o que deviam fazer e o que não deviam fazer. Isso
é a lei registrada em tábuas de pedra e não em seus
corações. Eles eram um povo muito irresponsável, de modo que
nem o servo de Deus, nem o próprio Deus podiam confiar
neles. Bastava deixá-los por si mesmos um dia e eles faziam
tudo errado. Eles eram como cavalos, nos quais temos que
colocar freios e cabrestos para que nos obedeçam. Sabemos
que esta ilustração é usada nas Escrituras. Salmo 32:9.
Entretanto, o crescimento em Cristo é algo totalmente
diferente disso.
A
filiação significa responsabilidade espiritual. Devido a
habitação interior do Espírito, somos capazes de dizer: "Eu
sei que estas pessoas são confiáveis. Eu sei que o Senhor
está nelas. Eu sei que elas próprias sabem que o Senhor
habita nelas. Por causa disso, posso confiar no Senhor que
está nestas pessoas". Acaso não desejamos que todos os
crentes sejam assim? Pois nisso está a diferença entre os
filhinhos e os filhos maduros.
Vejamos o que Paulo diz em Gálatas: "Porque sois filhos, o
Espírito nos foi dado como o Espírito de filiação. Deus
enviou o Espírito de Seu Filho aos nossos corações" (ver Gl
4:5,6). Paulo não está contradizendo a verdade da diferença
entre filhinhos e filhos maduros. Ele está dizendo que ao
recebermos o Espírito Santo, recebemos a filiação em
potencial. Isso quer dizer que a partir de então, o Espírito
Santo torna possível a plenitude de Cristo. Toda a plenitude
de Cristo está no Espírito Santo que habita em nós. Contudo,
temos diante de nós a seguinte pergunta: será que vamos
continuar como crianças? Ou será que vamos viver no Espírito
e crescer até sermos filhos plenamente maduros?
O
apóstolo Paulo estabelece outro contraste nesta carta ao
comparar filhos com escravos. Neste caso, ele não está
enfatizando a relação entre Israel e o cristianismo, pois a
ilustração é tomada da vida entre os gregos. No sistema
grego, o escravo tomava o filho pequeno da família pela mão
e o levava até o mestre que iria ensiná-lo. O escravo
conduzia aquela criança em meio ao tráfego de pessoas na
rua, passando até mesmo por lugares perigosos. Ele cuidava
do menino e fazia tudo por ele. Ao chegar à escola, o
escravo entregava o menino àquele que haveria de educá-lo. O
filho era entregue às mãos daquele que haveria de dirigir
sua educação espiritual.
Paulo nos diz que a lei era o escravo, cuja função era
tomar-nos pela mão e conduzir-nos até Cristo. Como podemos
ver, a lei relaciona-se com crianças pequenas. A lei provê
tudo que é necessário para elas. O propósito da lei era
levar-nos pela mão até o Espírito Santo, para que então o
Espírito Santo nos conduzisse à filiação. Portanto, Paulo
estabelece a diferença entre o escravo e o filho. O escravo
faz tudo por nós externamente, mas o Espírito faz tudo em
nós no interior. Por causa disso, Paulo coloca ênfase nesta
expressão: "Até Cristo ser plenamente formado em vós".
O
caráter absoluto dessa nova dispensação é "Cristo em nós".
Isso nos leva de volta a Gálatas 2:20: "Já não sou eu quem
vive, mas Cristo vive em mim". O Espírito Santo que habita
em nós está conosco para capacitar-nos a entender as coisas
do Senhor, ou seja, dar-nos inteligência espiritual sobre as
coisas do Senhor.
Em
outro lugar, o apóstolo afirma: "A palavra de Cristo habite
em vós ricamente, em toda a sabedoria" (Cl 3:16). Versão
Revisada de Almeida (JUERP, 1974). Antes que possamos ter a
sabedoria, o entendimento espiritual, precisamos ter a
Palavra habitando ricamente em nós. O fundamento da obra do
Espírito Santo em nossas vidas é que a Palavra do Senhor
esteja ricamente em nós. É imprescindível que tenhamos um
conhecimento amplo e abrangente das Escrituras, pois isso é
a base da obra do Espírito Santo. Ele nunca fará qualquer
coisa à parte da Palavra de Deus.
Não
tenho palavras para expressar a alegria que tenho por ter
podido estudar a Bíblia extensivamente antes de enfrentar
uma grande crise espiritual. Eu estudei a Bíblia
sistematicamente do início ao fim. Em função disso, podia
escrever num quadro negro um esquema e uma análise de cada
livro da Bíblia, assim como podia dar palestras sobre eles.
Contudo, foi necessário que eu tivesse uma crise espiritual
muito real para que pudesse entender a Bíblia que eu
conhecia tão bem em minha mente. Foi naquele momento que a
Bíblia que eu conhecia tornou-se um livro vivo.
Você
lembra do que aconteceu com os apóstolos no dia de
Pentecostes. Eles eram judeus e conheciam muito bem as
Escrituras dos judeus, ou seja, conheciam muito bem o que
estava escrito no Antigo Testamento. Eles poderiam dizer-nos
tudo que Moisés havia escrito. Eles também poderiam
dizer-nos tudo que Davi havia escrito, assim como tudo que
os profetas haviam escrito. Entretanto, no dia de
Pentecostes sua Bíblia tornou-se viva. Eles herdaram de
forma espiritual tudo o que haviam conhecido de forma
mental. Todavia, o Espírito Santo não poderia ter feito Sua
obra se eles não tivessem um fundamento na Palavra de Deus.
Será
que você lembra deste fato na Bíblia? Você está lendo sua
Bíblia de Gênesis a Apocalipse? Você está realmente
estudando a Palavra de Deus? Seria possível dizer que a
Palavra de Deus habita ricamente em você? Se sua resposta é
positiva, então você possui o fundamento para a sabedoria e
o entendimento espiritual.
Podemos perceber que esta era a diferença entre Jesus e os
escribas. Sabemos que os escribas eram a autoridade quanto à
Bíblia. Eles eram uma classe de pessoas que conhecia as
Escrituras de memória. Eles sabiam de tudo que estava
registrado no Antigo Testamento. Se alguém quisesse alguma
explicação sobre alguma parte do Antigo Testamento,
dirigia-se aos escribas, pois eles eram tidos como
conhecedores das Escrituras. Quando Jesus falou às
multidões, o veredito que foi dado ao Seu ensino era que Ele
"ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas".
O povo reconhecia os escribas como autoridades, mas também
dizia que Jesus ensinava com autoridade, coisa que os
escribas não faziam. Qual era a diferença entre ambos? Jesus
possuía entendimento espiritual das Escrituras, enquanto os
escribas tinham apenas a letra das Escrituras. O apóstolo
Paulo diz: "A letra mata, mas o Espírito vivifica".
Voltemos para Gálatas 4:19, pois este versículo concentra
todo o assunto que estamos abordando. Qual era o objetivo
pelo qual Paulo estava se empenhando? Qual era o propósito
pelo qual ele havia dado sua vida? Por que Paulo estava
sofrendo? O que havia com os gálatas que estava perturbando
tanto o apóstolo? Quando ele usa o termo "de novo", se
refere a um fato que ocorre pela segunda vez. É como se
Paulo dissesse: "Eu tive dores de parto pelo novo nascimento
de vocês. Custou-me muito sofrimento e dor ver vocês
realmente nascidos de novo. Era muito importante para mim
ver que Cristo estava plantado em seus corações. O novo
nascimento de vocês implicou em dores de parto para mim.
Entretanto, agora estou tendo que passar por tudo de novo.
Meu objetivo real não era apenas que Cristo estivesse em
vocês, mas que Ele fosse plenamente formado em vocês. Dessa
forma, Cristo cresceria em vocês e vocês cresceriam em
Cristo. Mas vocês estão colocando mais ensino no lugar de
Cristo, colocando a lei no lugar de Cristo e estabelecendo
um sistema legal no lugar de Cristo. Tudo isso me deixa em
agonia".
Apliquemos isso a nós mesmos. Se de algum modo estamos
sofrendo, qual é a razão disso? Se temos inimigos que estão
contra nós, tal como Paulo, qual é a razão disso? Qual é a
natureza de nosso sofrimento? Será por alguma razão pessoal
que nossos inimigos estão contra nós? Será que seu
antagonismo se deve a alguma obra pela qual somos zelosos?
Será que tudo se deve a uma posição que nos interessa
manter? Estaremos sofrendo porque existem pessoas que estão
contra a congregação onde nos reunimos e contra nossa
maneira de andar? Será que algum desses motivos mencionados
é a razão de nosso sofrimento? Peço ao Senhor que nos livre,
caso a oposição contra nós venha disso.
A
única razão verdadeira para qualquer sofrimento espiritual é
que Cristo esteja sendo impedido de expressar-se. Isso
ocorre quando vemos coisas que limitam ao Senhor. Tratam-se
de coisas que desonram ao Senhor e que irão resultar em
limitação espiritual. Tais coisas se opõem ao crescimento de
Cristo em nós. Todo o nosso sofrimento deve ser em função do
Senhor Jesus e por nenhuma outra coisa mais. "Até Cristo ser
plenamente formado." Está é a última palavra que eu gostaria
de deixar com vocês.
Todos nós passamos por problemas e podemos identificar a
causa de boa parte deles. Contudo, gostaria de retomar nosso
ponto focal: estamos sofrendo dores por causa de coisas? Ou
será que estamos sofrendo pela formação plena de Cristo? O
sofrimento em nossos corações está relacionado ao
crescimento do Senhor Jesus? Estará tudo relacionado ao
desejo de que Ele tenha a primazia que Lhe é devida? Estará
tudo ligado ao propósito de que Ele seja plenamente formado
em nós? Já experimentamos verdadeiramente esse tipo de dores
de parto? Não se trata de dores sofridas por alguma coisa,
mas dores de parto em favor de Cristo.
Se
vocês estão sofrendo de alguma forma (e deveriam estar
sofrendo), gostaria de perguntar-lhes: qual é o motivo do
seu sofrimento? Ele é fruto de uma preocupação genuína pela
honra e pela glória do Senhor Jesus? Ele é fruto do desejo
que, em cada um de nossos irmãos, desde as crianças e jovens
até os adultos, Cristo possa ter a Sua plenitude? Estamos
sofrendo dores de parto por causa disso?
Tudo
aquilo que compartilhamos está relacionado a estes
contrastes: legalismo e espiritualidade, judaísmo e
cristianismo, além de todas as outras diferenças que
mencionamos. Todas elas apontam para esta única questão: a
plena formação de Cristo em nós. Em que medida o legalismo
limita o crescimento de Cristo em nós? Em que medida nossas
técnicas são impedimentos ao caminho de Cristo? Todas estas
coisas estão em referência a Cristo. Portanto, deixo esta
questão com vocês. Ao fazer isso, a única coisa que desejo
levar como certeza é que preguei a Cristo para vocês. Não
estive apenas dando ensinamentos bíblicos. Também não tentei
colocá-los na técnica correta da igreja. Estive mantendo
Cristo sempre no primeiro plano e dizendo-lhes que o assunto
de suprema importância para conosco é Cristo plenamente
formado em nós.
FIM
Artigo retirado da
página
Águas Vivas e traduzido por Cláudio Calovi Pereira -
Porto Alegre-RS
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